sábado, 27 de dezembro de 2008

contodeférias


Bilhar

 

Estoura. O quinze cai na caçapa do canto superior esquerdo. A porta se abre silenciosamente. As bolas espalhadas, sabe que é ímpar e mira a três na caçapa do meio direito. Passo a passo, caminha em direção ao quarto. O Honda na porta indica que ela não está sozinha. O triângulo já se desfez completamente e há o onze e o cinco em médias e oblíquas distâncias das caçapas inferiores. Ainda na cozinha, tira a faca do jogo de churrasco: a mais larga, pra não restar dúvida. Tacada silenciosa, macia e longa. Olha por sobre a mesa, os desenhos estão perfeitos e fáceis. Ouve-se, bem baixo, gemidos e sussurros entredentes. A faca, nas costas, esconde a adrenalina a mil correndo por todos os vasos sanguíneos. O coração bate mais retumbante na tacada da sete, pois que a bola branca está quase encostada nela e a boca que se deseja está no canto oposto. Estranhamente deixa a faca sobre o aparador da sala, enquanto atravessa o ambiente. Ao invés de rumar ao quarto, dá passos laterais em direção ao criado do telefone preto de discar – um mimo de setenta e seis reais “pra dar um charme retrô à sala” – desgraçada. Abre sua gaveta com cuidado. O ranger da madeira pode levantar suspeitas. A sete pára na boca e um silêncio se faz, momentaneamente, na casa, ainda com a gaveta a meia abertura. Nem respira. “Tem alguém aí?”, “Posso jogar agora?”. Nem chega a abrir a porta do quarto (parece nem levantar da cama), erra a oito que estava a um pelo da caçapa do meio esquerdo. De dentro da gaveta, retira o tampo falso e pega a pistola semiautomática. A sete agora é engolida suavemente. Ajeita o taco no vinco dos dedos, fecha um olho a quase noventa graus do corpo com a mesa, visa a cinco, que ainda está no mesmo lugar. Olha com um olho pela fechadura, num ângulo de quase noventa graus. O movimento é ofegante e parece estar perto do clímax. A nove no meio do tapete verde já tem sua morte decretada: caçapa superior direita. Gira a maçaneta com a mão ruim, enquanto a boa empunha a pistola, que entra antes do braço no quarto. Na ré, a treze morre numa tabela magnífica e precisa. Aponta então para o ás, esperto que come sua mulher enquanto ele sai com os amigos para uma sinuquinha. “Ã?” Um tiro preciso na cara do número 1.



Fim da sinuca.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Carla, no volante do Tutu que levou a gente

Íngrid

 

Viajar com família é bom, eu já havia me esquecido, tanto tempo faz que não viajo com ela. Ta certo que não é com todo mundo. Estamos em quatro aqui em Curitiba: eu, Lorens, Carla e Fernanda (essas duas, minhas irmãs). A viagem foi uma loucura. Saímos de Goiânia umas 6 da manhã, paramos de verdade apenas duas vezes de lá até aqui. As outras paradas, xixi e pedágios (como tem pedágio de lá pra cá!) foram rapidíssimas, coisa de cinco minutos cada. Chegamos a Curitiba às 8 da noite e fomos procurar nosso hotel, a Lorenna esqueceu de anotar os dados do hotel de onde ela fez reserva (eheheh).

Achado o hotel, tomamos banho, jantamos uma janta digna de pedreiro e agora estou repassando o dia aqui no Blog, fazendo jus ao gênero surgido em 1999 de fazer um diário aberto.

A viagem foi divertidíssima, essas mulheres são umas figuras. Viemos de lá até aqui distorcendo a língua portuguesa e usando expressões das mais idiotas.

- Ow, esse carro não sobe bem só quando a subida é “íngride”;

- A curva de nível favorece a “declinicidade” da água da chuva, evitando a erosão;

- Lá vai ter “menas” gente do que esperamos;

- Ela não tem “cacique” pra isso;

- Nossa, esse “pedálgio” ficou caro, hein?

- Tava mexendo com “dogras”;

Entre tantas outras que não vou me lembrar agora.

Tomamos três chuvas do cacete, achei que o mundo ia acabar. Achei que a chuva queria bater no carro, tão forte que ela tava. Fez sol em uns pedaços e a Carla, no seu pezinho 33/34 pisava fundo. Chegamos a 160 km/h sem sentir, o carro é bom pra carai. Mas só quando tava seco, porque quando chovia, só via nego rezando, ehehehehe.

Amanhã cedo estamos partindo pra Floripa. Acho que lá vai estar o maior sol. Espero mesmo que esteja, pois essa viagem, além de estar me custando caro, ainda tem que compensar todo esforço e planejamento pra ela. Devemos encontrar no sábado com minha outra irmã, meu cunhado e sobrinhos. Minha prima e meu primo também vão pra Floripa, mas pra ficar em outra casa. Vai ser farra nessas praias, viu.

Amanhã eu volto pra postar mais.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

viagem


Sim, estou de férias. Nada melhor no mundo do que sexo, chocolate, Playstation II e... Férias!
Estou saindo de viagem dia 25 e só devo retornar dia 6 do ano que vem. Vou pra Florianópolis. Nem estou empolgado, imagine.
Vou fazer desse blog o sentido original do gênero: um diário aberto. Quero tirar muitas fotos de onde estarei e tentarei falar um pouco do que verei e do que viverei lá no Sul.
Dá uma olhadinha na praia de lá. Bonitinha, né não?
Abraços aos leitores e leitoras que me acompanham!

crônica

- Advinha?
- Sei lá.
- Não, sério, advinha.
- Po, não sei, fala logo de uma vez.
- Ah, vai, dá um chute.
- Ta: saiu com a Genoveva?
- Não.
- Então com quem?
- Não, não é isso.
- Mas eu não sei do que se trata, será que você pode desembuchar e falar logo? To perdendo a curiosidade!
- Vou trabalhar no sábado!
- ...
- Paia, né?
- Paia é você gerar suspense pra uma coisa tão estupidamente insignificante pra mim!!
- Não, mas vai rolar uma graninha massa.
- Pelo menos, né?
- Chuta quanto?
- Ah, não, de novo não...
- Chuta, vai!
- 477 reais.
- Nããããão! Cinquentão!
- Caramba, você vai trabalhar no sábado pra ganhar “cinquentão”?
- E o melhor você não sabe.
- Quê?
- Você não faz nem idéia?
- Nenhuma.
- Arrisca.
- Cara, arrisca o quê? Não to ganhando nada com isso!
- Um palpite, pelo menos, vai?
- Não sei, você vai ser contratado definitivamente?!?
- Nada disso!!! Vai ter lanche às 10 da manhã!
- Nossa... que bom, hein... assim você não morre de fome...
- Pois é, e o chefe ainda me disse o quê? Ahn?
- Ahn?
- Não vai nem tentar?
- Nem quero, pra ser franco.
- Cara, você não vai acreditar.
- Talvez até acredite, pra encurtar logo o papo.
- Ele falou. Que vai contratar. Mais uma menina. Pra RECEPÇÃO! PIRA?
- Nossa. To chocado.
- Mesmo?
- Mesmo, não vê que estou saltitante? ¬¬
- E além de tudo, sabe o quê?
- O quê, Deoclécio, o quê??? Fala de uma vez!!
- Você vai ficar bege...
- Eu já to roxo de agonia!!
- Vê se pode!
- Verei, se você disser. Mas já adianto que pode.
- Ela é lá de Faina.
- Noooooossa, mas isso é muito relevante.
- Sério, você não está debochando?
- Puta que pariu, Deoclécio, você ta um pé no saco...
- Por quê?
- Advinha.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

cego

Juliane Moore, guiando os cegos pensados por Saramago


Ensaio sobre a cegueira me acordou – novamente – para o Saramago. Eu não poderia dizer se foi boa ou má a adaptação da obra, uma vez que não li esta, especificamente. Mas poderia dizer que Saramago estava ali, na voz de Juliane Moore e na direção de Fernando Meirelles.

Também não senti necessidade de classificar o filme como drama, ou como suspense, ou como humor negro (não, isso não é típico do Saramago), ou... eu não senti, porque o filme é. Simplesmente é.

Enquanto as pessoas ficam cegas, apenas uma, num antro dos que não vêem, enxerga. Essa talvez seja sua pior condenação: ver o que fazem os cegos de então.

As alegorias pululam na tela e nas falas, algumas vezes ditadas por uma espécie de narrador que um dia vai voltar a ver. Mas não, ele é personagem e tem seus melhores momentos de velho quando fica cego junto com a multidão. Dá a entender que a vida na cegueira branca é melhor, pelo menos a sua.

O filme é intenso, é tenso, é teso, é a tez de Saramago pelo olhar publicista de Meirelles. É a tese do perder para ganhar. Filme muito bom de assistir com a caneta e o papel do lado. Os bons versos não se perdem, tal como os bons vinhos ou os bons carros.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

rockNrolla


RockNrolla não inova. É mais um filme de Guy Ritchie. Tem trocentos personagens, alguns idiotas, alguns inteligentes, muito mais homens do que mulheres. Dinheiro, coincidências, armas, drogas. Sério mesmo, não tem nada de novo.

Talvez por isso ele mantenha, portanto, a engenhosidade do diretor de ligar as coisas, como sempre faz, e a gente adora. Fui ao cinema e quero ir outra vez. Depois quero comprar o filme.

O filme segue a trilha de seus dois melhores longas Snatch – porcos e diamantes e Jogos, trapaças e dois canos fumegantes. Um cara deve a outro. O outro quer garantir uma licença pra construir um prédio, já que é isso que tem dado dinheiro em Londres. Utiliza seus contatos políticos para fazê-lo a um russo, um outro é enteado de um deles. Um quadro é roubado. Inicia-se uma pendenga.

E você ri. Porque o filme é muito engraçado. Mas é aquele humor britânico, negro, sofisticado, sarcástico, com apenas o canto da boca.

Não vou falar mais, mas preste atenção à cena de Jhony Quid tocando piano num pub e filosofando sobre um maço de cigarros. A cena tem um texto magnífico. Guy Ritchie tem um texto magnífico.


Desespero, angústia, holocausto, síndrome do pânico, dor na alma, susto, distorção da realidade, falta de auto-aceitação, medo, horror, distúrbio, transtorno, incredulidade, falta de amor próprio, incompreensão, não aceitação da realidade, auto-depreciação, falta de sexo, falta de dinheiro, falta...

Algumas dessas palavras ajudam a compreender o mais famoso quadro do pintor norueguês Edvard Münch, O grito, da última década do século 19. Porém, seria reduzir a beleza dessa pintura a um monte de palavras negativas e que só remetem ao pior do ser humano. Melhor é observarmos o trabalho artístico, aonde ele conseguiu chegar.

Melhor é vermos como a imagem pode ainda ser mais angustiante quando feita num sistema de pintura chamado xilogravura. Nesse processo, o artista encrava na madeira os espaços que ele deseja ficar brancos na tela e deixa os relevos para ser pintados, fazendo assim um “carimbo”. Ele, então, passa tinta nessa matriz, aplica sobre a tela, coloca numa prensa e, aí sim, temos o quadro. No caso da ilustração acima, é uma reprodução muito fiel e triste do Grito de Münch, talvez ainda mais perturbadora do que o próprio desenho original.

Aproveita.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

concretoV

Ando meio quadrado, ultimamente. Retrógrado quase sempre. Moderninho, como nunca. Insatisfeito, tipo todos os dias. Contraditório todas as noites. E concreto, como em 98.





terça-feira, 14 de outubro de 2008

domingo, 12 de outubro de 2008

concretoIII



contodooutro

A insistentes pedidos, sob pena de não mais visitarem meu blog...

Passeio noturno – Parte II

Rubem Fonseca

Eu ia para casa quando um carro encostou no meu, buzinando insistentemente. Uma mulher dirigia, abaixei os vidros do carro para entender o que ela dizia. Uma lufada de ar quente entrou com o som da voz dela: Não está mais conhecendo os outros?
Eu nunca tinha visto aquela mulher. Sorri polidamente. Outros carros buzinaram atrás dos nossos. A avenida Atlântica, às sete horas da noite, é muito movimentada.
A mulher, movendo-se no banco do seu carro, colocou o braço direito para fora e disse, olha um presentinho para você.
Estiquei meu braço e ela colocou um papel na minha mão. Depois arrancou com o carro, dando uma gargalhada.
Guardei o papel no bolso. Chegando em casa, fui ver o que estava escrito. Ângela, 287-3594.
À noite, saí, como sempre faço.
No dia seguinte telefonei. Uma mulher atendeu. Perguntei se Ângela estava. Não estava. Havia ido à aula. Pela voz, via-se que devia ser a empregada. Perguntei se Ângela era estudante. Ela é artista, respondeu a mulher.
Liguei mais tarde. Ângela atendeu.
Sou aquele cara do Jaguar preto, eu disse.
Você sabe que eu não consegui identificar o seu carro?
Apanho você às nove horas para jantarmos, eu disse.
Espera aí, calma. O que foi que você pensou de mim?
Nada.
Eu laço você na rua e você não pensou nada?
Não. Qual é o seu endereço?
Ela morava na Lagoa, na curva do Cantagalo. Um bom lugar.
Estava na porta me esperando.
Perguntei onde queria jantar. Ângela respondeu que em qualquer restaurante, desde que fosse fino. Ela estava muito diferente. Usava uma maquiagem pesada, que tornava o seu rosto mais experiente, menos humano.
Quando telefonei da primeira vez disseram que você tinha ido à aula. Aula de quê?, eu disse.
Impostação de voz.
Tenho uma filha que também estuda impostação de voz. Você é atriz, não é?
Sou. De cinema.
Eu gosto muito de cinema. Quais foram os filmes que você fez?
Só fiz um, que está agora em fase de montagem. O nome é meio bobo, As virgens desvairadas, não é um filme muito bom, mas estou começando, posso esperar, tenho só vinte anos. Na semi-escuridão do carro ela parecia ter vinte e cinco.
Parei o carro na Bartolomeu Mitre e fomos andando a pé na direção do restaurante Mário, na rua Ataulfo de Paiva.
Fica muito cheio em frente ao restaurante, eu disse.
O porteiro guarda o carro, você não sabia?, ela disse.
Sei até demais. Uma vez ele amassou o meu.
Quando entramos, Ângela lançou um olhar desdenhoso sobre as pessoas que estavam no restaurante. Eu nunca havia ido àquele lugar. Procurei ver algum conhecido. Era cedo e havia poucas pessoas. Numa mesa um homem de meia-idade com um rapaz e uma moça. Apenas três noutras mesas estavam ocupadas, com casais entretidos em suas conversas. Ninguém me conhecia.
Ângela pediu um martíni.
Você não bebe?, Ângela perguntou.
Às vezes.
Agora diga, falando sério, você não pensou nada mesmo, quando eu te passei o bilhete?
Não. Mas se você quer, eu penso agora, eu disse.
Pensa, Ângela disse.
Existem duas hipóteses. A primeira é que você me viu no carro e se interessou pelo meu perfil. Você é uma mulher agressiva, impulsiva e decidiu me conhecer. Uma coisa instintiva. Apanhou um pedaço de papel arrancado de um caderno e escreveu rapidamente o nome e o telefone. Aliás quase não deu para eu decifrar o nome que você escreveu.
E a segunda hipótese?
Que você é uma puta e sai com uma bolsa cheia de pedaços de papel escritos com o seu nome e o telefone. Cada vez que você encontra um sujeito num carro grande, com cara de rico e idiota, você dá o número para ele. Para cada vinte papelinhos distribuídos, uns dez telefonam para você.
E qual a hipótese que você escolhe?, Ângela disse.
A segunda. Que você é uma puta, eu disse.
Ângela ficou bebendo o martíni como se não tivesse ouvido o que eu havia dito. Bebei minha água mineral. Ela olhou para mim, querendo demonstrar sua superioridade, levantando a sobrancelha – era má atriz, via-se que estava perturbada – e disse: você mesmo reconheceu que era um bilhete escrito às pressas dentro do carro, quase ilegível.
Uma puta inteligente prepararia todos os bilhetinhos em casa, dessa maneira, antes de sair, para enganar os seus fregueses, eu disse.
E se eu jurasse a você que a primeira hipótese é a verdadeira. Você acreditaria?
Não, ou melhor, não me interessa, eu disse.
Como não interessa?
Ela estava intrigada e não sabia o que fazer. Queria que eu dissesse algo que a ajudasse a tomar uma decisão.
Simplesmente não interessa. Vamos jantar, eu disse.
Com um gesto chamei o maître. Escolhemos a comida.
Ângela tomou mais dois martínis.
Nunca fui tão humilhada em minha vida. A voz de Ângela soava ligeiramente pastosa.
Eu se fosse você não bebia mais, para poder ficar em condições de fugir de mim, na hora em que for preciso, eu disse.
Eu não quero fugir de você, disse Ângela esvaziando de um gole o que restava na taça. Quero outro.
Aquela situação, eu e ela dentro do restaurante, me aborrecia. Depois ia ser bom. Mas conversar com Ângela não significava mais nada para mim, naquele momento interlocutório.
O que é que você faz?
Controlo a distribuição de tóxicos na zona sul, eu disse.
Isso é verdade?
Você não viu o meu carro?
Você pode ser um industrial.
Escolhe a sua hipótese. Eu escolhi a minha, eu disse.
Industrial.
Errou. Traficante. E não estou gostando desse facho de luz sobre a minha cabeça. Me lembra as vezes em que fui preso.
Não acredito numa só palavra do que você diz.
Foi a minha vez de fazer uma pausa.
Você tem razão. É tudo mentira. Olha bem para o meu rosto. Vê se você consegue descobrir alguma coisa, eu disse.
Ângela tocou de leve meu queixo, puxando meu rosto para o raio de luz que descia do teto e me olhou intensamente.
Não vejo nada. Teu rosto parece o retrato de alguém fazendo uma pose, um retrato antigo, de um desconhecido, disse Ângela.
Ela também parecia o retrato antigo de um desconhecido.
Olhei o relógio.
Vamos embora?, eu disse.
Entramos no carro.
Às vezes a gente pensa que uma coisa vai dar certo e dá errado, disse Ângela.
O azar de um é a sorte do outro, eu disse.
A lua punha na lagoa uma esteira prateada que acompanhava o carro. Quando eu era menino e viajava de noite a lua sempre me acompanhava, varando as nuvens, por mais que o carro corresse.
Vou deixar você um pouco antes da sua casa, eu disse.
Por quê?
Sou casado. O irmão da minha mulher mora no teu edifício.
Não é aquele que fica na curva? Não gostaria que ele me visse. Ele conhece o meu carro. Não há outro igual no Rio.
A gente não vai se ver mais?, Ângela perguntou.
Acho difícil.
Todos os homens se apaixonam por mim.
Acredito.
E você não é lá essas grandes coisas. O teu carro é melhor do que você, disse Ângela.
Um completa o outro, eu disse.
Ela saltou. Foi andando pela calçada, lentamente, fácil demais, e ainda por cima mulher, mas eu tinha que ir logo para casa, já estava ficando tarde.
Apaguei as luzes e acelerei o carro. Tinha que bater e passar por cima. Não podia correr o risco de deixá-la viva. Ela sabia muita coisa a meu respeito, era a única pessoa que havia visto o meu rosto, entre todas as outras. E conhecia também o meu carro. Mas qual era o problema? Ninguém havia escapado.
Bati em Ângela com o lado esquerdo do pára-lama, jogando o seu corpo um pouco adiante, e passei, primeiro com a roda da frente – e senti o som surdo da frágil estrutura do corpo se esmigalhando – e logo atropelei com a roda traseira, um golpe de misericórdia, pois ela já estava liquidada, apenas talvez ainda sentisse um distante resto de dor e perplexidade.
Quando cheguei em casa minha mulher estava vendo televisão, um filme colorido, dublado.
Hoje você demorou mais. Estava muito nervoso?, ela disse.
Estava. Mas já passou. Agora vou dormir. Amanhã vou ter um dia terrível na companhia.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

VotarII

Meu programa de tevê predileto passa duas vezes por dia, mas só de dois em dois anos: horário eleitoral gratuito. Divirto-me com as figuras que, entre propostas redundantes, demagógicas e estapafúrdias, alegram esses cinqüenta minutos.
Parece que a hierarquia é também obedecida com o nível das piadas. Do candidato a presidente da República ao candidato a vereador há um caminho longo que é determinado pela quase completa falta de bom senso.
Os candidatos, neste pleito, concorrem à prefeitura e ao cargo de vereador. Prevalece o saco de risada nos programas dos vereadores.
As propostas dos candidatos goianos são mirabolantes. Vão desde a luta pela abertura de escolas de cabeleireiro de uma candidata na periferia (precisando de óleo de peroba, né não?) até o discurso non sense de um cara com nome Ganexa. Ganexa? Puta merda, não deixa! Vão de um professor (como os há) com cara de peixe morto, até um “maluco doido na câmara”. Será que resolve colocar raulzistas na câmara? Penso.
Minha memória política não é das piores. Lembro-me bem em quem votei nas últimas eleições. Fica fácil lembrar quando se vota nulo para quase todos os cargos. E percebo que nessas eleições vai ser difícil, porque o páreo está duro. As propostas são muito semelhantes. Antes os candidatos ofereciam bibelôs e coisinhas sem muita importância; hoje, mais descaradamente do que nunca, oferecem dinheiro através das bolsas criadas legalmente nos últimos anos.
Aquele discurso repetido à exaustão “deve-se dar o peixe, mas, além disso, deve-se ensinar a pescar” não tem sido cumprido. Lembro-me de um prefeito que adorava flores ter dito isso. Agora há outro candidato ao mesmo cargo que também repete o dito. E nenhum programa sério de pescaria nos estados. Só o Lula criou o “Ministério da Pesca”.
É inegável que são homens de coragem. Com uma cara-de-pau dessas, é muita pachorra aparecer/reaparecer para pedir voto a alguém. Aqueles que aqui foram cassados sofrem processos administrativos (entre outros) ou votaram contra os interesses do povo, são comediantes de início de carreira perto desses arautos da piada mal contada que vemos Brasil afora, como Maluf concorrendo à prefeitura de São Paulo mais uma vez. “Rouba, mas faz”, lembram?
Surpreendi-me com um jornal de circulação regional divulgar os nomes e as fotos dos vereadores que derrubaram o veto do prefeito aos 13º, 14º e 15º salários. O jornal divulgou inclusive quem se absteve da votação. Impressiona-me saber que os caras fizeram essa votação há pouco, em plena época de campanha política. O pior? A maioria é candidato à reeleição. (abaixo, foto dos FDPs)
A piada está no fato de não irmos atrás da vida desses homens públicos e depois reclamarmos de suas atitudes como políticos. É gozado cobrar algo de um candidato que nos aperta a mão olhando nos olhos e depois ver que aquilo era só aquele exato momento. Lembro-me de rir de um candidato daqui que falava dos candidatos que só iam à feira pra pedir votos, que só quem entende o feirante é o próprio feirante. Ri, porque não é o fato de eu ir a um lugar que determinará as necessidades daquele lugar. Mas o figura não está de todo errado se considerarmos que os políticos são nossos melhores amigos na hora de elegê-los, porém nossos maiores algozes quando tiram da boca de nosso filho o alimento com as benesses que fornecem para si e para os seus.
Será que ainda vamos rir dessa patuscada que se mostra diante de nós ou os palhaços já SOMOS nós? Quando penso nisso, fico completamente sem graça.

Votar



Esses são os queridíssimos políticos que nós temos aqui na roça. Não que na metrópole seja diferente, também lá há políticos desgraçados. (Tenho a impressão de que político desgraçado é um pleonasmo, como "oco por dentro" ou "hemorragia de sangue") Esses caras aqui votaram pelo 13º, 14º e 15º salários, derrubando o veto do prefeito. Sabe o que isso significa? Que as pessoas (eu "me incluo fora dessa", não votei em nenhum deles) estão prestes a reeleger quem só pensa em seu próprio benefício, ou no de seus familiares. Já reparou em quantas pessoas ao seu redor vão votar em alguém que lhes possa ajudar em algo? Arrumando algum bico, emprego ou favores? Muita gente! Sabemos que voto nulo não é mais contado; sabemos que voto branco vai para quem ta ganhando; sabemos que votar no Tião Macalé como protesto acaba por elegê-lo. O que fazer então? Votar nos mais sem graça e inexpressivos políticos. Assim a gente não põe no poder nem ladrões nem malucos, apenas pessoas inexpressivas. Quem sabe com elas lá nós retomemos nossa vontade de gritar?

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

contoVI

Volta pelo bairro (mau menino)

   Era domingo. Dia de churrasco. Dia de encontro da família. Ele era contra. Mesmo porque, estômago fraco, difícil alimento. Saiu às ruas caminhando esquecido de casa, que reciprocamente esquecida dele. Pensou na encruzilhada. Pensou na primeira que viu. E foi lá que virou. Sem rumo, errava pelos embrenhos de seu bairro mediano. Encontrou o carro branco que prometera no seu primeiro dia de raiva adolescente. (num certo dia, ele se cansou de todas as contravenções que vivia dentro de sua casa, de difícil convivência com sua habitual estranheza, e decidiu escolher uma coisa pra fazer quando estivesse puto, pra ver se conseguia sair do lugar comum que permeava sua vida, e então decidiu quebrar o vidro de um carro branco quando encontrasse este, simplesmente pra cometer uma delinqüência maior que a contradição de sua vida, sem pensar no que poderia acontecer depois disso) Quebrou o vidro rápida e discretamente com uma telha da construção da própria casa de quem o carro parecia ser pertence. O alarme soou, ele saiu caminhando um pouco aliviado. O velho zelador do prédio em frente viu tudo e pensou esclerosado que o menino estaria louco. Isso tudo depende muito de referencial.

Encontrou a menina da rua de cima. Sentiu um ódio incontrolável por ela, já que trajava um short curto, com as belas pernas torno-bronzeadas e uma barriga muito bonita pra um domingo de cerveja e comidas pesadas. Não teve dúvida em estuprá-la. Mas pensou que o sol daquela quente tarde não o deixaria à vontade. Ela olhou-o de cima a baixo, aquele semblante não era o usual do menino tímido da rua debaixo. Com o punho direito fechado, ele deu um soco seco em seu seio esquerdo, deixando-a sem ar e dolorosamente assustada; ele passou direto e a amiga que estava ao lado dela, por causa do chofre, não soube o que fazer, pois que aterrorizada.

Em sua caminhada insurrecta, os níveis de adrenalina do garoto deveriam estar muito altos, já que não era muito comum ele sentir aventuras correndo pelo seu ignóbil sangue amaldiçoado. Mas não estava satisfeito ainda. Precisava ver quanto tempo conseguiria ficar imune. Subiu a rua adjacente à que estava. Passou diante de uma casa, não tinha carro, era um varal e uma mulher estendendo ou retirando as roupas de lá. Foi-se à sua testa um pedaço de tijolo que abriu o supercílio antes de ela cair desacordada no chão. Um bêbado logo adiante achou estranho aquele movimento e chegou a murmurar qualquer coisa pra ele. Curiosamente o bêbado foi poupado, já que os atos cometidos eram covardes. Mas não eram covardes porque o menino era covarde. Eram covardes porque assim ficava mais fácil fazer mais coisas sem enfrentar problemas. Só um tapa na cabeça do ébrio sentado adiante.

Já estava perto da esquina e o boteco que nela se encontrava estava abrindo as portas exatamente a uma e meia. O dono do bar estava só e tinha colocado apenas duas mesas lá fora. Quando de costas assentou a terceira mesa, recebeu uma cadeirada no dorso que o fez prostrar-se, não dando tempo sequer de saber o que estava acontecendo; eis que recebeu uma segunda cadeirada que pegou metade na nuca, metade nas costas, colocando o homem no chão com um grito oco de dor. Ao acabar o serviço, a fúria ainda pisou a mão do comerciante estendido. Já não era o bastante para tanta sedição?

Ele ainda derrubou um menino de bicicleta com um chute, bateu na cara de uma velha que reclamou o machucado da criança, deu um soco no nariz de um amigo de infância que com ele ingenuamente topou, chutou a boca de um cachorro de rua que dormia na sombra de uma árvore, aterrorizou crianças jogando lâmpadas fluorescentes, encontradas num lixo, dentro da casa delas, até que concluíra o quarteirão, dando de frente com uma súcia de populares com pedaços de pau, pedras e muita revolta nos olhos de sangue.

domingo, 31 de agosto de 2008

Eu acho que já comentei o quanto tenho horror a cri-Onças, não?

Menina de 9 anos é suspeita de matar padrasto em Campo Grande (MS)

Colaboração para a Folha Online

Uma menina de 9 anos matou o padrasto com uma faca de cozinha por volta das 14h deste domingo, em Campo Grande (MS). De acordo com o delegado Rodrigo Vasconcelos Braga, da Depac (Delegacia de Pronto Atendimento Comunitário), a menina diz ter apunhalado o padrasto durante uma briga que ele tinha com a mãe. A mulher já teria sido agredida fisicamente por ele antes.

A criança usou uma faca de cozinha com cabo de plástico para apunhalar o padrasto no tórax. Segundo a Sejusp (Secretaria de Justiça e Segurança Pública), o golpe teria acertado o coração, matando o homem ainda no local.

A criança e a mãe foram encaminhadas à Depac, onde foram interrogadas. A mãe alega não ter visto o momento do crime, mas garante que não teve envolvimento na morte do marido. A criança foi ouvida por uma psicóloga do SOS Criança e por uma conselheira tutelar. Segundo Braga, ambas concluíram que a menina pode ter sido a autora do crime. A criança foi encaminhada ao conselho tutelar.

O caso será encaminhado para o Deaij (Delegacia Especializada de Atendimento à Criança e Juventude) onde deve ser aberto um inquérito. De acordo com o delegado, tanto a menina quanto a mãe serão investigadas.

O corpo do padrasto da criança foi encaminhado ao IML (Instituto Médico Legal) de Campo Grande.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u439932.shtml

domingo, 24 de agosto de 2008

Youtube, a oficina do diabo




Quando conheci o Youtube, há uns dois anos no máximo, eu achava que o fim da televisão estava próximo. Eu não estava errado, apesar dessa previsão ser como a de que o Papa não deve durar mais uns 20 anos (afinal, ele tem mais de 80), ou seja, muito previsível.

Comecei a ver as coisas que eu gostava e que há séculos eu não via (episódios de desenhos animados, trechos de filmes, propagandas antigas, etc.), sempre me divertindo até a fechar a conta.

Depois comecei a ver as produções individuais, filmagens pessoais, videocassetadas que não foram pro Faustão, etc. Muito lixo e muita coisa engraçada. E muito lixo engraçado, conseqüentemente.

Daí, começaram as paródias. Tudo pode ser parodiado. De banda Calypso tocando “Aces high” (Iron Maiden) a uma banda hippie setentista chamada Apache tocando num clipe esdrúxulo ao som de Cannibal Corpse. Esse é doente de tão bom. Tem também o Slipknot tocando “La bamba”. O clássico, pra mim, são as versões (improvisadas pela fonética) em português de cantores indianos, como o clássico “Rivaldo, sai desse lago” ou “Golimar”. Este, com o refrão marcado por um eco feito na tora “Golimar... mar... mar...”, sem contar que é um plágio toooooooosco do “Thriller” do Jacko.

Aliás, tosquice é um elemento constante no Youtube. Quanto tempo eu já perdi esperando baixar coisas que achei que poderiam ser interessantes e, no fim, eram ridiculamente ruins. Mas a tosquice tem seu lado bom, sempre. Vide a abertura editada do clássico herói japonês Jiban, em que no refrão temos a imagem de um Adalberto feito no paint matando o herói de rir. “Jiban, Jiban, ri do Adalberto e morre”.

A edição de vídeos que já existem é outro grande trunfo. Há um curto e ótimo vídeo lá do Darth Vader chamado “Darth Vader being a smartass”, de 46”, que é fantástico, típico do Chaves. Aliás, Kiko dançando “atoladinha” é outro clássico.

Eu, que parei de ver televisão há um tempinho, não me canso de procurar porcaria no Youtube. Percebo que aquilo ali é melhor que tevê, porque você escolhe o que quer ver, mas acaba que a gente de cabeça vazia torna-se mais e mais tosco. É o que tenho dito, Youtube é a oficina do diabo.

Zeitgeist

Zeitgeist é uma palavra alemã que possui muitas acepções. A que mais me chama atenção refere-se ao pensamento que ocorre simultaneamente em locais totalmente diferentes do mundo ao mesmo tempo, sem que os pensantes tenham essa noção. Dizem que aconteceu isso com a lâmpada elétrica. Quem levou a fama foi Thomas Edison, por ter executado a idéia.

O mesmo ocorreu com o movimento punk, por exemplo, que as pessoas vivem discutindo se foi em Londres com o Sex Pistols ou se foi em Nova Iorque com os Ramones ou o New York Dolls que surgira. Aconteceu. Ao mesmo tempo. Como uma necessidade.

Semana passada eu fiquei intrigado com acontecimentos que mais pareciam coincidência, mas a palavra zeitgeist não saía da minha cabeça. O “espírito do tempo” (tradução literal para o termo alemão) andava me perseguindo. No sábado passado, enquanto dava aula, citei um Palio a título de um exemplo. No instante seguinte, um funcionário da escola entra na sala pedindo que o proprietário de um Palio fosse lá embaixo. Fez-se silêncio na sala, mas segue o passeio.

Eu estava só com o projetor na sala, o notebook não vinha há mais de meia hora, então eu decidi ir lá embaixo buscar o computador. Antes mesmo de chegar ao meio da sala, o mesmo funcionário entrou com o note...

Minha mulher sugeriu que eu jogasse o “jogo mais difícil do mundo”, um joguinho massa, mas difícil pra encardir, porque ela disse que eu iria gostar. Antes que eu o procurasse, vi lá na minha página inicial o tal joguinho em destaque na parte de jogos – me chamando pra jogá-lo, certamente.

No domingo, decidi começar a escrever esta crônica, porque achava que estava bem acompanhado espiritualmente. Porém, tão viciado fiquei no tal jogo mais difícil, que nem comecei a esboçar. Na segunda, depois de um acontecimento do qual não me lembro agora e que poderia ser entendido como a tal coincidência, uma aluna muito querida veio me perguntar se eu já havia assistido a um filme. Ela queria que eu lesse no papel, porque ela não sabia pronunciar o nome: Zeitgeist. Eu quase tive um infarto do miocárdio e senti uma pontada na pleura. Quando a tal da coincidência começa a nos perseguir, parece que déjà vus são insignificantes, e como assusta!

Uns dizem que coincidências não existem, que tudo acontece por um motivo. Bem, que elas existem, elas existem, por isso até têm um nome. Se é o acaso ou a pré-destinação que as gera, eu não sei responder. Nem sei em que acreditar. Tem horas que eu creio que tudo acontece na hora que tem que acontecer. Mas costumo pensar isso só quando as coisas dão certo. Se elas não se encaixam perfeitamente, ou eu as ignoro, ou eu fico tremendamente irritado – sobretudo quando, além de não se encaixarem, dão totalmente errado.

E você? Acredita em coincidências?

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Artigo metalingüístico

Decidi publicar esse texto por dois motivos: 1º - ele é bastante esclarecedor, porque parte de um ser humano acima da média se colocando na nossa posição, de gente comum; 2º - porque está no site do Kanitz, colunista da Veja de quem, apesar de muita divergência, gosto muito de ler, é um ser humano o cara (e há poucos nessa revista). E se está no site dele, então está disponível na net. Lá há outros artigos igualmente interessantes, sobre diversos assuntos. Na verdade existe um terceiro motivo: vocês, meus alunos, precisam ler mais e aprender com o que lêem. Esse texto simples e inteligente tem este intuito: mostrar que você é plenamente capaz de produzir um texto tão bom quanto os que fez a vida inteira. Boa tessitura. E esta é totalmente desemaranhada.






Como escrever um bom artigo

Escrever um bom artigo é bem mais fácil do que a maioria das pessoas pensa. No meu caso, português foi sempre a minha pior matéria. Meu professor de português, o velho Sales, deve estar se revirando na cova.

Ele que dizia que eu jamais seria lido por alguém. Portanto, se você sente que nunca poderá escrever, não desanime, eu sentia a mesma coisa na sua idade.

Escrever bem pode ser um dom para poetas e literatos, mas a maioria de nós está apta para escrever um simples artigo, um resumo, uma redação tosca das próprias idéias, sem mexer com literatura nem com grandes emoções humanas.

O segredo de um bom artigo não é talento, mas dedicação, persistência e manter-se ligado a algumas regras simples. Cada colunista tem os seus padrões. Eu vou detalhar alguns dos meus e espero que sejam úteis para você também.

1. Eu sempre escrevo tendo uma nítida imagem da pessoa para quem eu estou escrevendo. Na maioria dos meus artigos para a Veja, por exemplo, eu normalmente imagino alguém com 16 anos de idade ou um pai de família.
Alguns escritores e jornalistas escrevem pensando nos seus chefes, outros escrevem pensando num outro colunista que querem superar, alguns escrevem sem pensar em alguém especificamente.

A maioria escreve pensando em todo mundo, querendo explicar tudo a todos ao mesmo tempo, algo na minha opinião meio impossível. Ter uma imagem do leitor ajuda a lembrar que não dá para escrever para todos no mesmo artigo. Você vai ter que escolher o seu público alvo de cada vez, e escrever quantos artigos forem necessários para convencer todos os grupos.

O mundo está emburrecendo porque a TV em massa e os grandes jornais não conseguem mais explicar quase nada, justamente porque escrevem para todo mundo ao mesmo tempo. E aí, nenhum das centenas de grupos que compõem a sociedade brasileira entende direito o que está acontecendo no país, ou o que está sendo proposto pelo articulista. Os poucos que entendem não saem plenamente ou suficientemente convencidos para mudar alguma coisa.

2. Há muitos escritores que escrevem para afagar os seus próprios egos e mostrar para o público quão inteligentes são. Se você for jovem, você é presa fácil para este estilo, porque todo jovem quer se incluir na sociedade.

Mas não o faça pela erudição, que é sempre conhecimento de segunda mão. Escreva as suas experiências únicas, as suas pesquisas bem sucedidas, ou os erros que já cometeu.

Querer se mostrar é sempre uma tentação, nem eu consigo resistir de vez em quando de citar um Rousseau ou Karl Marx. Mas, tendo uma nítida imagem para quem você está escrevendo, ajuda a manter o bom senso e a humildade. Querer se exibir nem fica bem.

Resumindo, não caia nessa tentação, leitores odeiam ser chamados de burros. Leitores querem sair da leitura mais inteligentes do que antes, querem entender o que você quis dizer. Seu objetivo será deixar o seu leitor, no final da leitura, tão informado quanto você, pelo menos na questão apresentada.
Portanto, o objetivo de um artigo é convencer alguém de uma nova idéia, não convencer alguém da sua inteligência. Isto, o leitor irá decidir por si, dependendo de quão convincente você for.

3. Reescrevo cada artigo, em média, 40 vezes. Releio 40 vezes, seria a frase mais correta porque na maioria das vezes só mudo uma ou outra palavra, troco a ordem de um parágrafo ou elimino uma frase, processo que leva praticamente um mês. Ninguém tem coragem de cortar tudo o que tem de ser cortado numa única passada. Parece tudo tão perfeito, tudo tão essencial. Por isto, os cortes são feitos aos poucos.

Depois tem a leitura para cuidar das vírgulas, do estilo, da concordância, das palavras repetidas e assim por diante. Para nós, pobres mortais, não dá para fazer tudo de uma vez só, como os literatos.

Melhor partir para a especialização, fazendo uma tarefa BEM FEITA por vez.
Pensando bem, meus artigos são mais esculpidos do que escritos. Quarenta vezes talvez seja desnecessário para quem for escrever numa revista menos abrangente. Vinte das minhas releituras são devido a Veja, com seu público heterogêneo onde não posso ofender ninguém.

Por exemplo, escrevi um artigo "Em terra de cego quem tem um olho é rei". É uma análise sociológica do Brasil e tive de me preocupar com quem poderia se sentir ofendido com cada frase.

O Presidente Lula, apesar do artigo não ter nada a ver com ele, poderia achar que é uma crítica pessoal? Ou um leitor achar que é uma indireta contra este governo? Devo então mudar o título ou quem lê o artigo inteiro percebe que o recado é totalmente outro?

Este é o tipo de problema que eu tenho, e espero que um dia você tenha também.

O meu primeiro rascunho é escrito quando tenho uma inspiração, que ocorre a qualquer momento lendo uma idéia num livro, uma frase boba no jornal ou uma declaração infeliz de um ministro. Às vezes, eu tenho um bom título e nada mais para começar. Inspiração significa que você tem um bom início, o meio e dois bons argumentos. O fechamento vem depois.

Uma vez escrito o rascunho, ele fica de molho por algum tempo, uma semana, até um mês. O artigo tem de ficar de molho por algum tempo. Isso é muito importante.

Escrever de véspera é escrever lixo na certa. Por isto, nossa imprensa vem piorando cada vez mais, e com a internet nem de véspera se escreve mais. Internet de conteúdo é uma ficção. A não ser que tenha sido escrito pelo próprio protagonista da notícia, não um intermediário.

A segunda leitura só vem uma semana ou um mês depois e é sempre uma surpresa. Tem frases que nem você mais entende, tem parágrafos ridículos, mas que pelo jeito foi você mesmo que escreveu. Tem frases ditas com ódio, que soam exageradas e infantis, coisa de adolescente frustrado com o mundo. A única solução é sair apagando.

O artigo vai melhorando aos poucos com cada releitura, com o acréscimo de novas idéias, ou melhores maneiras de descrever uma idéia já escrita.
Estas soluções e melhorias vão aparecendo no carro, no cinema ou na casa de um amigo. Por isto, os artigos andam comigo no meu Palm Top, para estarem sempre à disposição.

Normalmente, nas primeiras releituras tiro excessos de emoção. Para que taxar alguém de neoliberal, só para denegri-lo? Por que dar uma alfinetada extra? É abuso do seu poder, embora muitos colunistas fazem destas alfinetadas a sua razão de escrever.

Vão existir neoliberais moderados entre os seus leitores e por que torná-los inimigos à toa? Vá com calma com suas afirmações preconceituosas, seu espaço não é uma tribuna de difamação.

4. Isto leva à regra mais importante de todas: você normalmente quer convencer alguém que tem uma convicção contrária à sua. Se você quer mudar o mundo você terá que começar convencendo os conservadores a mudar.

Dezenas de jornalistas e colunistas desperdiçam as suas vidas e a de milhares de árvores, ao serem tão sectários e ideológicos que acabam sendo lidos somente pelos já convertidos. Não vão acabar nem mudando o bairro, somente semeando ódio e cizânia.

Quando detecto a ideologia de um jornalista eu deixo de ler a sua coluna de imediato. Afinal, quero alguém imparcial noticiando os fatos, não o militante de um partido. Se for para ler ideologia, prefiro ir direto na fonte, seja Karl Marx ou Milton Friedman. Pelo menos, eles sabiam o que estavam escrevendo.

É muito mais fácil escrever para a sua galera cativa, sabendo que você vai receber aplausos a cada "Fora Governo" e "Fora FMI". Mas resista à tentação, o mercado já está lotado deste tipo de escritor e jornalista. Economizaríamos milhares de árvores e tempo se graças a um artigo seu, o Governo ou o FMI mudassem de idéia.

5. Cada idéia tem de ser repetida duas ou mais vezes. Na primeira vez você explica de um jeito, na segunda você explica de outro. Muitas vezes, eu tento encaixar ainda uma terceira versão.

Nem todo mundo entende na primeira investida, a maioria fica confusa. A segunda explicação é uma nova tentativa e serve de reforço e validação para quem já entendeu da primeira vez.

Informação é redundância. Você tem que dar mais informação do que o estritamente necessário. Eu odeio aqueles mapas de sítio de amigo que se você errar uma indicação você estará perdido para sempre. Imagine uma instrução tipo: "se você passar o posto de gasolina, volte, porque você ultrapassou o nosso sítio".

Ou seja, repeti acima uma idéia mais ou menos quatro vezes, e mesmo assim muita gente ainda não vai saber o que quer dizer "redundância" e muitos nunca vão seguir este conselho.

Neste mesmo exemplo acima também misturei teoria e dois exemplos práticos. Teoria é que informação para ser transmitida precisa de alguma redundância, o posto de gasolina foi um exemplo.

Não sei por que tanto intelectual teórico não consegue dar a nós, pobres mortais, um único exemplo do que ele está expondo. Eu me recuso a ler intelectual que só fica na teoria, suspeito sempre que ele vive numa redoma de vidro.

6. Se você quer convencer alguém de alguma coisa, o melhor é deixá-lo chegar à conclusão sozinho, em vez de você impor a sua. Se ele chegar à mesma conclusão, você terá um aliado. Se você apresentar a sua conclusão, terá um desconfiado.

Então, o segredo é colocar os dados, formular a pergunta que o leitor deve responder, dar alguns argumentos importantes, e parar por aí. Se o leitor for esperto, ele fará o passo seguinte, chegará à terrível conclusão por si só, e se sentirá um gênio.

Se você fizer todo o trabalho sozinho, o gênio será você, mas você não mudará o mundo, e perderá os aliados que quer ter.

Num artigo sobre erros graves de um famoso Ministro, fiquei na dúvida se deveria sugerir que ele fosse preso e nos pagar pelo prejuízo de 20 bilhões que causou, uma acusação que poderia até gerar um processo na justiça por difamação.

Por isto, deixei a última frase de fora. Mostrei o artigo a um amigo economista antes de publicá-lo, e qual não foi a minha surpresa quando ele disse indignado: "um ministro desses deveria ser preso". A última frase nem foi necessária.

Portanto, não menospreze o seu leitor. Você não estará escrevendo para perfeitos idiotas e seus leitores vão achar seus artigos estimulantes. Vão achar que você os fez pensar.

7. O sétimo truque não é meu, aprendi num curso de redação. O professor exigia que escrevêssemos um texto de quatro páginas. Feita a tarefa, pedia que tudo fosse reescrito em duas páginas sem perder conteúdo.

Parecia impossível, mas normalmente conseguíamos. Têm frases mais curtas, têm formas mais econômicas, tem muita lingüiça para retirar.

Em dois meses aprendemos a ser mais concisos, diretos, e achar soluções mais curtas. Depois, éramos obrigados a reescrever tudo aquilo novamente em uma única página, agora sim perdendo parte do conteúdo.

Protesto geral, toda frase era preciosa, não dava para tirar absolutamente nada. Mas isto nos obrigava a determinar o que de fato era essencial ao argumento, e o que não era.

Graças a esse treino, a maioria das pessoas me acha extremamente inteligente, o que lamentavelmente não sou, fui um aluno médio a vida inteira. O que o pessoal se impressiona é com a quantidade de informação relevante que consigo colocar numa única página de artigo, e isto minha gente não é inteligência, é treino.

Portanto, mãos à obra. Boa sorte e mudem o mundo com suas pesquisas e observações fundamentadas, não com seus preconceitos.

Stephen Kanitz




segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Gente estranha I

Gente é bicho estranho mesmo. Eu comprovo isso todo dia. Nos bancos, nos ônibus, nos carros, nas escolas, nas ruas e nas grandes construções. Gente é tão estranho que às vezes chego a pensar que não seguimos as mesmas regras de conduta (dentro da mesma sociedade), que não somos plagiadores, que não somos verdadeiramente falsos. Que até pra ser falso tem de ser verdadeiro. Odeio gente que é falso falso.

Encontrei com um caboco outro dia e ele era um desses tipos estranhos. Era gente, enfim. Ele veio me mostrar seus trabalhos, seus artesanatos. Constrói caixas com lâminas de madeira. Tem a cara vermelha e conversa muito e baixo. Às vezes muito baixo. Extremamente tímido. E depois de um dedo de prosa (sei lá se foi tudo isso, acho que foi meia falange de prosa) o cara fez uma piada sobre um tipo de caixa dele, que a caixa poderia ser usada como bolsa feminina, dada a aparência e as alças de sisal. Piada nada, aquilo era uma comparaçãozinha daquelas que você abre meio sorriso pra cumprir a função fática da linguagem e não deixar o outro sem graça. E o cara depois da piada e do meu meio sorriso soltou uma gaitada, ria nervosamente olhando nos meus olhos e rindo, muito alto, mas muito mais alto que a boa convivência entre humanos recomenda. Meu meio sorriso deu lugar a um todo constrangimento. Esbocei o sorriso de volta e o cara não parou de rir, um riso contínuo, alto, que não era de gargalhada, era uma espécie de trunfo que ele tinha pra deixar o cliente desconcertado e rir com ele.

Pessoas que riem muito alto têm disto: baixa auto-estima. Chamam a atenção pra si deixando os outros com vergonha. Ou mesmo humilham o interlocutor (constrangendo-o) por acreditar que assim a piada será piada de qualquer jeito, que ele não sairá perdedor.

Só que ele já é um total perdedor apenas por fazer esse tipo de coisa. O humorista de verdade tem noção de feeling, timing (sacou? sacou? isso é pra mostrar que estou inteirado com o pessoal das artes cênicas, já até uso seu jargão), não fica procurando cabelo em ovo nem forçando a barra com as piadas horríveis. Nem matando as boas.

Da próxima vez que esse estranho aparecer lá na loja do meu pai, vou olhar no fundo dos olhos dele e começar a rir nervosamente, igual a ele. Jamais ficarei sem graça novamente!

segunda-feira, 7 de julho de 2008

nariz

De férias, só consigo pensar em besteira. Cabeça vazia, youtube do diabo. Apesar das manifestações positivas em relação aos meus contos, o que muito me alegra, decidi publicar essa crônica sobre um assunto muito pertinente, pois que cotidiano. Espero que gostem e que façam bom uso.
Tem gente republicando (não de república, per favore) meus textos. Só peço que digam de quem é. Tem um monte de texto rodando na net com o nome do Veríssimo, do Jabor, do Neruda, da Lispector, sendo que na maior parte das vezes eles não escreveram nada daquilo. Então, pra isso não acontecer, quem quiser passar meus textos pra frente, sem problemas, só avise de quem é.
Abraços e boas férias a todos. To indo pra roça jogar playstation. Contraditório? Sempre. Sou demasiado humano pra fugir disso.

Naso riste fingers

Antes fosse apenas um hábito, mas não, é um ato filosófico. Ninguém acredita muito quando falamos nisso, pois trata-se de escatologia. Mas é verdade. É um dos momentos mais serenos que temos no nosso dia-a-dia, um momento de meditação e auto-conhecimento e que pouca gente enxerga dessa forma, por puro preconceito: colocar o dedo no nariz.

Tem hora certa pra isso acontecer. Normalmente, em locais e ocasiões solitárias, colocamos o dedo no nariz a fim de, antes de simplesmente fazer a limpeza do salão, fazer uma pequena reflexão. Na verdade é a hora da abstração. Ninguém se concentra para tirar uma cutia do nariz. Nisso, a meditação e as tiradas de meleca são muito parecidas. Enquanto se leva o dedo à venta, todos os pensamentos parecem ceder lugar ao nada, ao abandono, ao silêncio, ao gosto, ao prazer, ao deleite, à profunda e sincera atitude de arrancar a nhaca grudada às paredes nasais. É o nada que vai ao tudo.

No trânsito, por exemplo, no momento em que somos reprimidos com um sinal de pare, com a cor vermelha que nos indica perigo mas ao mesmo tempo nos incita ao prazer sexual, fatalmente vamos cometer o ato reflexivo da retirada de cacas nasais. É mais comum quando estamos sozinhos, mas pode ocorrer também com pessoas ao lado, vai variar aí o grau de intimidade que essas pessoas têm entre si. Dependendo, pode-se até mostrar ao companheiro o que foi retirado do nariz.

Há vários tipos de ranhos e não cabe a nós, aqui, delongar-nos sobre esses tipos, pois que nos propomos a expor apenas sobre o ato reflexivo da tirada de balaco. Porém, faz-se fundamental apresentar pelo menos os três tipos básicos de resíduos nasais que se nos afiguram todos os dias:

1) Seco-e-rente: este tipo é o mais comum, é o que tiramos todos os dias do nariz. Ele se prende à parede da venta e normalmente, dependendo da dilatação desta, pode ser retirado com o dedão e o dedo indicador, como uma placa, de maneira inteiriça;

2) Misto: este catoco mescla o estado colóide do catarro (nem sólido, nem líquido) ao seco-e-rente. Quando é retirado, normalmente a parte seca sai presa à unha, enquanto a parte colóide fica por cima, geralmente encostando nas bordas do orifício nasal;

3) Colóide: neste caso, a titica está molhada, verde e apresenta – em casos normais fora de doenças como a gripe – pequenos resíduos, frutos da muca antiga que se mantinha colada à parede.

Observados os tipos básicos, pode-se pensar que a atitude de tirar cutias é nojenta, pois que, pequenos, já entendidos de filosofia como nenhum poeta grego, fazíamos isso sem qualquer tipo de pudor ou moral. O que nos é imposto, porém, é que o social não permite as atitudes reflexivas a que nos submetemos todos os dias. Precisamos sempre ser números e, como tais, comportarmo-nos de forma previsível e calculada. Mas somos humanos, precisamos de reflexão, é quesito básico de existência. Ninguém pode sobreviver sem tirar o catarro do nariz, mesmo porque ele se acumula e pode até dificultar a respiração e, conseqüentemente, o raciocínio.

Mas a verdade é que fugimos sempre às regras em alguns momentos, nos permitimos fazer essas coisas, porque o ato da limpeza, como dito, é apenas uma conseqüência. O que se tem, em verdade, é uma insubmissão às regras preestabelecidas todos os dias no momento em que se leva o dedo em riste até a entrada do tubo respiratório. Todos os dias somos revolucionários, todos os dias somos iconoclastas. Mesmo o mais ortodoxo defensor da política católica, direitista, conservadora, mesmo ele vai enfiar o dedo no nariz com muito gosto pra tirar aquela placa de ranho inteira; isto gera uma alegria inenarrável e certamente o leitor deve estar se coçando pra enfiar o dedo no nariz. Pra pensar, pra revolucionar, pra ser alguém.

Pois enfie, leitor, enfie com vontade. Esqueça-se de onde está, esqueça as pessoas, se estiver no ônibus, enfie o dedo no nariz, se estiver na casa da sogra, na frente dela, de mãos dadas com a namorada, libere uma mão e enfie o dedo no nariz, se estiver no escritório, se tem gente na recepção esperando quem quer que seja, enfie o dedo no nariz, se estiver no trânsito, esqueça o seu redor, enfie o dedo no nariz, onde quer que você esteja, enfie o dedo no nariz, não se culpe por isso. É bonito, é forte, é verdadeiro, é iconoclasta! Não se acabrunhe, enfie o dedo no nariz!!! Abandone a moral, os bons costumes, agrida alguém que sempre o achou educado, tire um pedaço molhado e verde na frente dele, deixe encostar propositalmente na venta, pra ficar uma pontinha verde nela. É como ser vampiro e deixar os dentes sujos de sangue pra provar que não há do que se envergonhar. Enfie o dedo no nariz conscientemente e tenha certeza, você será uma pessoa mais feliz.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

contoV




Estou de férias, finalmente. Agora o Bololololog não vai ficar tão desatualizado assim. Eita povim que reclama de eu não atualizar. E o pior é que são sempre as mesmas três pessoas (acho que são as únicas que lêem o que escrevo, eheheheh).

Estou numa fase tranqüila, gripado e com o olho inchado pelo mosquito que bateu nele quando estava de moto com a viseira aberta. Enfim, vcs não têm nada com isso, né? Pois então.
Esse conto foi publicado pela primeira vez no fanzine Demo Cognítio, o melhor de Goiânia (o zine, viu Thamires?). Boa leitura.



Abrupto: vida

Ele passava diante de uma loja de perfumes e a avistou de longe. Irrompendo pelos corredores de lojas do shopping, viu que era ela. "É ela!". Entrou na loja estupefato e a usual saudação da vendedora a qualquer um que entrava lá, deu lugar a um assombramento pela cara hirta do rapaz. Ela balbuciou algo como "pois não?", mas sequer ele ouviu, pois já foi desferindo palavras que pareciam de um louco em pleno surto. Não que isso não se pudesse dizer a seu respeito.

A gente precisa fazer sexo!

Ã?

Sexo, a gente precisa transar.

Tá maluco?

Ele realmente parecia estar maluco, mas parecia, ao mesmo tempo, ter a clareza das coisas, a lucidez dos sãos, a limpeza das águas cristalinas de um rio corrente e gelado, e a determinação de um terrorista.

Segurou na mão dela com alguma força, talvez firmeza seja mais adequado, enquanto ela tentava processar tudo o que ele falava e recendia. Ele tinha um cheiro que se sobrepunha aos da loja dela e se impunha como responsável por ser sexualmente transmissível. Gente é assim. Ela foi ficando sem jeito, as outras duas vendedoras mantiveram-se guardando seus perfumes e cuidando da loja tranqüilamente, enquanto os transeuntes ficavam definitivamente cegos pro que estava acontecendo.

– A gente não pode mais continuar assim, medíocres, discretos, comuns. Olhe nossas roupas, olhe nossas aparências (ele parecia um balconista de pastelaria e ela uma vendedora de loja de perfumes), olhe que vida mais idiota nós estamos levando!

– Mas essas coisas não se resolvem assim... eu não posso simplesmente transar com um estranho,

– Muito prazer, meu nome é Querosene, por isso não, vamos sair daqui agora, a gente tem pouco tempo, por favor, vamos, vamos....

E ia puxando-a pelo braço, que resistia, mais por hábito que por medo. Parecia que os dois concordavam com o momento. Estava óbvio que ela empacava porque nunca tinha vivido nada parecido, não porque não conseguisse entender. Ela entendia. Ela tanto entendia que foi atrás dele. Tanto que saiu da loja de alguma maneira, em pleno sábado, dia cheio, de algum jeito que os dois quase corriam, como marido e mulher indo atrás de seu carro que pegava fogo. Não tinha carro que pegava fogo, eram seus corpos quentes como brasa.

Eles já tinham caminhado de mãos dadas cerca de 50 metros quando ele parou, ela chegou a tropeçar nele e se viram de perto, menos de 15 cm do nariz um do outro. Um beijo resfolegante os atraiu e paralisou o tempo, o som, o lugar. Estavam inaudíveis, invisíveis, intocáveis naqueles segundos de reconhecimento labial e de língua. Foi o beijo deles. Separaram-se e reconheceram-se insanos com aquela estupidez consentida. Quem via os dois correndo podia imaginar que eles tinham destino certo. Não, não sabiam pra onde iam, simplesmente iam, parece que lançar-se-iam no abismo da vida. Parece que sairiam pela vagina de suas mães e dariam o grito da vida, o grito oco, seco, soco que é o máximo do tesão. O primeiro orgasmo é sair da mãe. Eles destruíam a placenta pra saltar no despenhadeiro pedrerrochoso da vida. O que sobraria? O que seria esse sexo que fariam?

No estacionamento do shopping ele se dirigia a passos largos (ele muito mais alto que ela, fazia-a correr) para a parte mais escura, onde luzes queimadas e luziluzentes denunciavam que dentro do centro de compras das luzes que funcionam, das pessoas que são bonitas, das altas somas que são gastas, tudo isso era o mundo idílico, enquanto que no estacionamento os lixos, os odores e as luzes queimadas se pareciam com a verdade do mundo cru da noite: farrapos, almas penadas, pingas, maus cheiros, violências e o que mais existe. Lá num canto ele já estava desabotoando a camisa e colocando-a pra fora da calça. Nem olhava pra trás. Ela estava apaixonada. Seus olhos tinham um brilho estranho enquanto era arrastada como uma mulher das cavernas pelo macho que sentia a hora de procriar e delimitar seu território e suas posses. Assim que ele parou e olhou pra ela, viu aquele brilho incomum conquistado em três minutos e teve certeza de que faria o melhor sexo do mundo.

Pela primeira vez desde que os dois se viram, ele se acalmou enquanto serpenteava o corpo dela com as mãos, à procura da entrada de onde era possível alcançar a alma. Ela tirou toda a roupa e nua em pêlo se entregou ao homem de nome Querosene. Enquanto seus corpos desrespeitavam as leis da física no parapeito do estacionamento superior, seus gemidos começaram a substituir a música ambiente da rádio do shopping.

À medida que as pessoas começavam a ouvir os gemidos intensos, estes aumentavam de volume e de intensidade.

Neste instante, depois de uns dois minutos de afobação daqueles que ouviam o som da vida se fazendo, 1354 pessoas e 136 crianças viram o som do centro comercial desaparecer pra dar eco aos ulos selvagens e destemidos daqueles que acordaram enquanto havia tempo. Luzes começaram a brilhar mais forte, homens ruborizavam-se por suas calças esticando-se, mulheres, pelas pernas que escorriam o líquido lubrificante, e os casais, os que haviam lá, já se entregavam aos beijos sôfregos e desesperados, e as pessoas que não formavam casal, como na brincadeira da cadeira, começavam a se olhar animais, e a agarrar-se uns aos outros, como se a música tivesse parado de tocar e fosse o momento de sentar à cadeira. Até que foi ficando escuro, os gemidos se intensificavam por todos os lados, as lâmpadas, antes brilhando forte, agora se arrebentavam de tanta energia e o mundo se fazia inteiro entregue ao desespero do amor instantâneo; pênis, vaginas, seios, bocas, colos, costas, barbas, ânus: vida.

Querosene quis saber o nome de sua parceira revolucionária, de vida e de morte: "Flamma, me chame de Flamma". E o mundo agora era só fogo e vida quente pulsando firme.