quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

último post


Raios de sol por entre nuvens goianas plúmbeas
      

      Este é o último post. Claro, desse ano. É engraçado, no final do ano somos tomados por uma vontade maluca de fazer listas, resoluções, retrospectivas, promessas e... o ano passa. Bebemos, comemoramos, levantamos nossas taças pro ano que vai nascer. Ouvem-se fogos de artifício, ouvem-se gritos e muitos sorrisos são vistos estampados nas caras; abraços são dados até em estranhos, e os desejos de que o próximo ano seja melhor que o que acabou reinam nos encontros de familiares e amigos. O dia primeiro chega, alguns dias passam. Nós ficamos ainda com aquela sensação de que alguma coisa vai mudar, de que vai ser diferente. Já até iniciamos nossas dietas, determinados como cavalos dispostos em páreos sob jóqueis anoréxicos. 
      Depois de quinze dias, mais ou menos, a rotina começa a nos importunar como nunca, e caímos numa onda de descrença tão grande que às vezes chegamos mesmo a deprimirmo-nos. Nada muda. Ninguém morre ou chega à vida em janeiro. Alguns fazem aniversário. Êê. Mas é só mais um ano passando. E que logo acabará, diga-se. Quando nos damos conta de que as coisas continuam como no ano anterior, exatamente como no ano anterior, lembramos da festa que fizemos no dia 31 e o que ficou foi só isto: a festa. Que para alguns é boa (as minhas são sempre ótimas), para outros é triste. Para uns, nem festa há, preferem o Twitter (sinal das mudanças comportamentais); e outros estão demasiado enfastiados das máscaras por trás das quais representamos diariamente em todos os lugares aonde vamos ou onde estamos (inclusive nessas festas), que não há motivo para fazer festa, mas também não têm coragem de puxar logo o gatilho.
      Eu anseio por algo sobrenatural, algo realmente diferente. Algo que não sejam apenas os números do calendário. Eu queria na zero hora uma mágica, um toque divino, uma transformação no meu cérebro estando eu consciente (eu sempre estou bêbado nessa hora). Queria olhar pra uma pessoa 23:59 e dois minutos depois ela ser realmente outra pessoa. Sei lá, um cabelo diferente, uma roupa diferente. Uma ideia diferente. Essa mágica, porém, não existe. Gente, é só uma festa no final do ano, a última do ano, só isso. O acordar (do francês réveiller) é só de mais uma noite, às vezes maldormida por causa dos excessos alcoólicos e gastronômicos.
      O post parece sombrio, triste, amargurado. Não é. É só uma pequena revelação que tive pensando sobre a festa. E eu gosto dos meus amigos e de festa. 
       Mas eu vou de cinza amanhã: pra combinar com o "clima".

terça-feira, 23 de novembro de 2010

ufg 2007

       O tema da redação de 2007 da UFG foi "Há padrões para ser feliz?". Havia, como sempre, três propostas de construção textual:
_ Artigo de opinião
_ Carta pessoal e
_ Fábula


Como estou trabalhando esses temas por esses tempos, recebi uma fábula desse tema que eu achei demais. Deem uma olhada nas metáforas criadas pelo minino!
<...>

Eram então muito amigos o coelho, a tartaruga e a coruja. Viviam na floresta de modo anarquista, cada um respeitando o seu espaço e fazendo aquilo que lhes coubesse fazer como integrantes daquela comunidade. Tinham leis claras que os impediam de se matar e ainda de garantir a existência dos demais animais. Por isso, viviam em perfeito equilíbrio.
Um dia, porém, mudou-se para a floresta um pica-pau, que além de muito animado e travesso, vinha de um lugar onde a competição imperava sobre o compartilhamento.
- Oi amigos, posso vir morar aqui? Prometo fazer a minha parte livrando das árvores todas as larvas horrorosas que incomodam vocês.
A proposta inicial do pica-pau parecia boa, e os animais acabaram aceitando-o. Exceto a coruja, que olhava de esguelha o animal azul, branco e vermelho.
Com o passar do tempo, o pica-pau criou raízes na floresta anarquista, mas ele não era como os outros animais. Acabava sempre se metendo em bravatas e negociações. Queria sempre tirar alguma vantagem do trabalho dos outros animais e, pela insistência ou pela “esperteza”, acabava conseguindo. Ria escandalosamente em seu tronco depois de mais uma barganha: “Rê-rê-rê-rêêêê-rê”.
Anos depois, tornou-se tão poderoso que tinha montado um negócio de exploração da flora da região onde viviam os animais. Negociava com humanos na cidade que vinham retirar as árvores, a água, os minerais. Ele havia convencido os outros animais de que a abundância desses recursos podia ser explorada sem preocupação. Mas isso não podia acabar bem.
Chegou o momento em que os animais não tinham mais como sobreviver. O pica-pau havia vendido quase toda a floresta e eles morreriam em uma semana. O pica-pau quis dar o fora antes que a floresta sucumbisse de vez, mas percebeu que ali era o último lugar onde ainda havia vida, o resto do mundo já tinha sido engolido pela ganância e exploração.
Então ele viu o coelho parar de reproduzir, a tartaruga morrer lentamente, a coruja não conseguir mais raciocinar. Olhou para a última poça d’água e, vendo sua imagem refletida, percebeu que o acúmulo de algo que não dava para ele se alimentar, o dinheiro recebido dos homens, não podia ser sinônimo de felicidade e que agora, em seus últimos instantes, ser feliz era apenas viver pacífica e coletivamente com seus amigos. Mas não havia mais amigos, não havia mais floresta, o mundo enfim acabava pelas garras da exploração e da competição desenfreada.
Moral: o dinheiro compra a felicidade, mas ela não é autêntica.

domingo, 31 de outubro de 2010

homem dois

O Homem Duplicado não é, nem de perto, nem de longe a melhor, tampouco pode ser considerada a pior, obra de José Saramago, escritor português que morreu neste mesmo ano em que estamos. Autor de clássicos como Ensaio Sobre a Cegueira, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Jangada de Pedra, entre outros tantos títulos, José Saramago gosta de criar narradores mexericos, que relatam claramente os fatos em longuíssimos parágrafos de várias páginas, poucos pontos e muitas vírgulas, com diálogos intensos e inteligentes marcados apenas pelas maiúsculas e pelos característicos verbos dicendi que indicam a enunciação, ao que alguém poderá perguntar Como é possível entender quem fala o quê, ao passo que o leitor saramaguiano dirá Simples, Como simples, Simples porque cada letra maiúscula indica a fala de um e destoutro, E como entender que se faz perguntas, Perguntas não necessitam ponto, Então o quê, A entonação já lhes basta, E exclamações, Também estas são dispensáveis, O contexto, Sim, sempre o contexto dirá. Também ele, o contexto, dirá para nós nesta obra como é que a epígrafe O Caos É Uma Ordem Por Decifrar, indicado por ser do Livro dos contrários, se resolve na trama pouco convencional, como é característico também na obra de José Saramago, cujos personagens costumam ter nomes curiosos, esquadrinhados por esse narrador que não gosta de fingir subentendidos, já no primeiro parágrafo da maioria de seus livros, repetidos inteiros a cada vez que se faz referência a eles, e neste romance em especial o personagem central se chama Tertuliano Máximo Afonso. Imagine o que é ler esse nome imenso e feio toda vez que o personagem aparece. Este Tertuliano Máximo Afonso é professor de história numa escola secundária, tem um colega professor de Matemática, assim chamado durante toda a trama, uma namorada Maria da Paz, uma mãe Carolina Máximo e um duplicado casado com uma Helena apelidado Daniel Santa-Clara como ator e António Claro na realidade. Há um cachorro também, Tomarctus, o que aliás é outra característica da criação saramaguiana. Tertuliano Máximo Afonso passa por um momento subtil de melancolia, marasmo o qual é notado pelo colega professor de Matemática que lhe indica uma comédia dessas de se ver desinteressado, da qual não se dá muitas gargalhadas, não há muitas acções cómicas, mas ri-se o suficiente para animar os amargores cotidianos. Eis que depois de assisti-lo, Tertuliano Máximo Afonso dorme e acorda no meio da noite como se ouvisse passos, como se houvesse gente a mais em casa onde morava sozinho. Depois de investigada a casa e não se constatar nenhuma presença, observa a fita de Quem Porfia Mata Caça no videocassete e decide rever o filme. A surpreendente matriz da narrativa é que Tertuliano Máximo Afonso encontra no filme um homem igualzinho a si, daí parte em busca de procurá-lo e achá-lo, e o enredo dá voltas arrepiando-se-nos a espinha toda vez que os dois partem para um encontro, seja para medir seus corpos e constatarem a idêntica existência, seja para travarem diálogos cruéis e confusos sobre quem é o duplicado de quem. José Saramago tem algumas manias narrativas que nos arremessam para dentro da teoria literária a qual parece ele próprio ter criado uma para si, como por exemplo narrar longamente fatos curtos e, na mais inesperada de todas as horas da leitura, narrar mil fatos em um curto espaço de linhas, menos da metade de uma lauda da livro. Também é mania pôr o narrador para reflectir sobre o acto narrativo, sobre o que é melhor para o leitor fazer, sobre o que poderá suceder e que não vai, sobre um possível diálogo, sobre filosofia aplicada. Manias que nos ajudam a delinear os motes da obra de José Saramago e entender-lhe a inquietação literária que o fez começar a escrever aos 25 anos de idade, quando publicara seu primeiro romance Terra do Pecado.
Saramago Duplicado


Então, o leitor se vê, no curto capítulo final, duplicando diálogos já antes atravessados, só que agora é como o fado pudesse ser totalmente controlado por Tertuliano Máximo Afonso. Narrativa fantástica intrigante e habilidosa ao desfecho. Recomendada para leitores pacientes e para pacientes leitores.


p.s.: Pus-me a escrever da forma que o fiz para garantir alguma homenagem ao escritor que aprendi a amar.

domingo, 24 de outubro de 2010

chapeuzinho vermelho

     Certa vez, uma garota viciada em crack, conhecida por andar sempre com um boné vermelho do MST, sem que fizesse parte do movimento brasileiro pelo fim do latifúndio, decidiu que era hora de visitar sua avó. Quem sabe ela não conseguisse dar a manta na aposentadoria da velha pra comprar mais umas pedrinhas. 
     Eis que, atravessando o bosque pra ver se encontrava alguns noias companheiros de cachimbo, se depara com um lobo de pelagem preta que rangia os dentes e também lambia os beiços. Uma fera. A garota do boné vermelho, ou chapeuzinho como alguém vai chamá-la algum dia, estancou. O lobo baixou as calças, mostrou a que vinha, ela levantou a saia até mostrar quase a bunda, e quando o bicho ia pra cima dela, percebeu que com as calças arriadas não conseguia correr tão rápido quanto ela com a saia lá em cima. E ela correu, correu, até o lobo perdê-la de vista num entroncamento de árvores muito grandes. 
      Ele continuou na trilha em que ela estava, quem sabe não encontrasse outra gostosinha em condições. Daí que a nossa querida viciada em pedra está detrás de um tronco de árvore com um paralelepípedo na mão. Antes que ele pudesse levantar a mão pra se defender, ela desce o pedregulho na cabeça do lobo, gritando "toma, filha da puta, qué estrupá? então vai se ferrá!". O lobo caiu desfalecido com a língua pra fora da boca e a braguilha da calça ainda aberta. Ela pisou o corpo dele, passando por cima. Revistou seus bolsos, achou três reais e pensou "vou pegar um baú pra chegar mais rápido na casa da minha velha".
     Assim ela fez. No ônibus, todos a olhavam com desdém, medo, nojo. Ela fingia que o dia estava bonito e que a fissura não dominava seu corpo arrebentado. O ônibus deu tanta volta, que ela quase saltou dele pra ir a pé mesmo, tanto ponto e gente nesses horários de pico.
Horas depois, ela chega a casa da avó. Ela gira a maçaneta, a vó não tinha hábito de trancar a porta, e entra sorrateiramente. Dá uma espiada na sala, na cozinha, não vê ninguém. Quando se achega até o quarto, vê uma figura preta sobre sua avó, os dois se encontram no que a gíria dos pedreiros diz "batendo coxas". Enquanto a vó delira de prazer, o lobo - agora está bem evidente que se ela tivesse vindo a pé chegava bem mais rápido, o desgraçado mesmo ela o tendo deixado desacordado conseguiu chegar antes que ela - se esforça pra satisfazer a anciã. Nossa Chapeuzinho se esconde detrás da máquina de costura do quarto e vasculha dentro da bolsa se acha algum níquel. Nada, não há um centavo dentro da bolsa da velha. Quando ela pensa em levantar, o lobo termina o serviço, a vó está com um sorriso de orelha a orelha. O lobo se veste, dá um beijo na testa da mulher, que diz: "o dinheiro está debaixo do forro da geladeira". "Desgraçado", pensa Chapéu, "come minha vó e ainda leva o dinheiro dela!"
     Levanta-se num pulo, a velha dá um grito de vergonha, pois está nua e enrugada, primeiro por estar sem roupa, segundo por estar velha. A neta faz "sshhhh!" com o dedo na boca. O lobo pergunta da cozinha: 
- Que foi, Marineide? 
- Nada, to só abrindo a boca de tédio...
- Tédio? Mas foi tão ruim assim?
- Imagina, eu estava esperando há anos por uma dessas!
- Aquela sua neta precisa de mais bons modos. Ta mexendo com crack e vai saber mais o quê!
- O quê? Crack? - e diz isso olhando firmemente pra neta, que está de pé procurando algo pra acertar o lobo. 
     Ao que ele retorna de súbito ao quarto, depara-se com a menina segurando a televisão 14" da avó, e diz: 
- Vai vender ou jogar na minha cabeça de novo, ô problemática?
     E Chapéu ia mandar a televisão na cara do lobo, quando sua vó dá-lhe uma bicuda na bunda e essa deixa o televisor cair sobre si quando leva as mãos ao cu. "Porra, vó, o cara te estrupa e você é que vem me batê!?" A mulher pede ao lobo pra segurar a garota, a vó vai até a despensa, busca de lá uma corda grossa de sisal e amarra no pé da neta. Depois a leva ao quintal e a amarra num pé de manga. "Vai ficar aí até passar a vontade de fumar essa merda", diz a mulher irresoluta quanto ao tratamento com a neta. 
- Porra, vó, não vai nem um cigarrinho do capeta pra aliviar?
- Negativo. Se quiser fumar uma manga, pode pegar do pé. Neta minha pode até ser puta, mas crackeira queima o filme demais da família. E vai metida na cinta liga ouvir Raul Seixas com o lobo no som da sala.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

com o coração pra fora dos peitos

a árvore da vida - gustav klimt

     Tenho me perguntado: o que é ser rico? Pra maioria, ser rico é ganhar na megassena (juntou, Bechara?) e esbanjar. Pra alguns, é ter dinheiro pra fazer viagens internacionais, ter imóveis e carros de luxo. Pra uns poucos, ser rico é ter o suficiente pra comprar tudo o que se quer, à vista. Pra uma minoria, ser rico não tem ligação direta com dinheiro. Eu to nesse último grupo.
     Toda vez que a megassena (Pasquale, é assim mesmo?) acumula, o povo sempre me pergunta "e aí, já fez sua fezinha?" Fezinha? Minha fezinha é no meu dia a dia, com meus alunos na sala de aula (ou fora dela), olhando pros lados pra um doido não furar o sinal e bater em mim, torcendo pro mais fraco ganhar pelo menos uma vez, acreditando que ainda dá tempo de salvar um pouco do mundo, difundindo a ideia de micropolítica não-institucional (hei, preciso escrever sobre esse conceito!), dando um abraço nos brothers, tomando uma na quarta com meu irmão urso Chikão, torcendo pros meus alunos passarem logo no vestibular (sobretudo quem já fez mais de dois), tentando não faltar com meu trabalho, lendo o que eu quero no meu tempo, almoçando na minha mãe alguns dias da semana, trocando ideia com minha família sobre trivialidades e sobre coisas importantes... fezinha é construir a vida, não esperar que ela se construa sozinha, de fora pra dentro. Não acredito só no acaso. Não acredito, só, no acaso. Prezo muito mais pela construção cotidiana da nossa sorte, que são, afinal, todas as possibilidades que se nos apresentam a cada segundo. Se soubermos olhar de esguelha pra ventura, sem nos importarmos demais com ela ou desprezá-la, ela vira pra nós e passa a nos seguir. Sobretudo a boa ventura.
     Um dia, a mãe da Isabella, uma amiga de tempos, morreu. E eu só pude ir à missa de sétimo dia, numa igreja que hoje é perto da minha casa. (nota: não foi a igreja que mudou, fui eu). E foi engraçado, porque eu tava no meio de janelas de aula, com minha irascível Honda CBX Aero 150 cc 1991 (uma moto encarniçada, de tão tosca) e fui lá abraçar minha amiga. Eis que o padre me solta, quando ainda procuro um espacinho que me coubesse no templo lotado, "... pois como disse, certa vez, Santo Agostinho: rico não é o que possui muitas coisas, mas o que precisa de pouco". E parece que eu não ouvi mais nada do que ele disse depois disso, pois de certa forma, a frase entrou direto no meu coração como um mantra sagrado que nos cobre de verdade e lucidez o qual passamos a repeti-lo sempre. Eu me dei conta de que era rico! Nunca passei fome na vida, tenho uma cama confortável para descansar dos dias corridos, tenho um veículo que me leva a todo lado, tenho um sem-número de amigos confiáveis e alguns nem tanto, mas que são gente boa, tenho uma família fantástica, tenho roupas pra me vestir, tenho o trabalho com o qual sonho e me realizo todos os dias... Peraí, sou rico pra caralho! E pra que mais, eu sempre me pergunto!
     Fico admirado de ver gente que tem se dado bem no trabalho, tem ganhado dinheiro mais até que o suficiente (quanto é o suficiente?) e não desliga. Parece que não está bom. Parece que ainda é preciso de mais. Se nós sabemos que o mundo vai acabar por causa do nosso ritmo de consumo, se sabemos que o desejo incipiente de compra acaba quando nosso dinheiro vai à mão do vendedor (às vezes antes mesmo de você repassá-lo), por que então continuamos a seguir esse modelo de vida? Parece tão óbvio esse nosso suicídio moral e ao mesmo tempo tão nublado... O que fazer para as pessoas despertarem? Ficar repetindo mil vezes "pare de comprar! pare de comprar!"? Sinceramente, não quero esse despertar quando já não houver mais nada. Anseio pela mudança, acredito nas pequenas ações, acredito no adolescente. E sim, vou repetir quantas vezes for necessário

Destrua o véu preto que cobre teus olhos
Ouça o que não foi dito
Leia o que não foi escrito
Destrua o véu preto que encobre os discursos
Arregace o coração pra fora dos peitos
Abra-te o cérebro
Torna-te um cérbero
Mas não defenda um inferno
- Isto é o que já fazem todos - 
Pense por três, morda por um
Rasgue as carnes da indiferença
Faça-te visto
Xingue um palavrão que te liberte ante o discurso falacioso das propagandas
À merda o consumo!!!
O lixo que ele produz na rua
E na cabeça sua!
Torna-te um monstro social que pensa,
Que hoje pensar dói, machuca e
Livra!

     Todos precisam de conforto, isso eu não nego. Pra mim, todos precisam viver dignamente. Mas pra que o ouro? O carro importado? Pra que quadruplicar rendas? Pra que solapar o miserável e enfurná-lo num buraco social mais fundo que o donde ele se encontra?
     Reescreva sua história com sua caneta. Eu estou reescrevendo a minha. Minha sorte são os caminhos que eu venho trilhando e abrindo com os olhos arregalados de paixão por tudo quanto se ligue à vida. Como diria o Mulder, porém aqui noutro contexto: "eu quero acreditar".



domingo, 19 de setembro de 2010

meu zeus zu céu

Saí da depressão pós-Lobo da estepe e decido ler Zeus - fragrância de crisântemos, do escritor goiano Rafael Ximenes, por sugestão de um aluno de cursinho que não compreendeu o narrador do final. Vamos lá, leitura rápida. Romance policial. Letras grandes. Espaço 1,5. Revisão do autor. Opa, eu disse "revisão do autor"? Caralho, isso me preocupa, porque não podemos revisar nossos textos próximo de publicá-los. Faço isso no blog porque sou irresponsável, mas o certo seria outro ler/corrigir. E tem lá no texto alguns vacilos linguísticos. Notar isso é coisa de gente mesquinha, que lê todas as letras da palavra, como eu. Nada comprometedor ao texto, nesse caso.
Já de partida Bariani Ortencio, reconhecido autor goiano, assina o prefácio comparando o estudante de medicina Rafael a um dos cânones da literatura goiana - quiçá o maior - Hugo de Carvalho Ramos. Mano, eu diria pro Bariani: "a única semelhança é a idade dos caras ao publicar suas obras". Fora isso...
Li o livro ontem mesmo, durante a tarde (com duas pausas pra sono num calor de caldo de mandioca servido às três e meia). Sinceramente, não gostei. Não sei se é a ressaca do Lobo (maldito livro que me tira o sono, ainda) (bendito livro que me faz dormir me sentindo mais inteligente) ou se o livro do rapaz é ruim, ou ainda se eu não gosto de literatura policial. Não é possível, eu adoro seriados como Law and Order (todos os 4), CSI, Medical detectives, 24 horas, Cold Case, Todo mundo odei (ops, esse não é policial)... enfim, parece que eu gosto do gênero. Rá, mas não tenho hábito de ler esses textos, apenas a ver as séries televisivas. Li apenas um conto da Agatha Christie, uns dois do Conan Doyle, dois romances do Dan Brown (mas esses eu achei ruins de doer também). Vai ver que é isso.
Os personagens são rasos, a trama é scooby-doolesca, e o autor precisa de um narrador onisciente em duas ou três partes do livro pra dizer o que o narrador personagem "não consegue", e um narrador no final que não parece muito com os outros dois, exceto o fato de ser onisciente como o que aparece em alguns capítulos. É um narrador pretensioso, eu diria.
Já ouvi falar que o gênero é rápido, que a leitura é fluida e que a gente fica com vontade de ler logo. Eu li em um dia essas cento e poucas páginas, muito mais porque não teria tempo hoje e quero começar logo um Saramago, do que necessariamente porque a história me prendeu. 
Um jornalista, um serial killer que mata retomando a mitologia grega, egípcia etc, na cena do crime perfume de crisântemos, dois amores mal ajambrados do jornalista e um detetive "culto" que dá definições de Wikipedia pro jornalista. É isso, basicamente. Parece uma boa redação de aluno meu, não parece um romance.
Rafael Ximenes ainda publicou outro livro com temas similares. Posso estar sendo exigente demais, até porque estou numa gana ultimamente por literatura reconhecida que nos pode criar preconceitos, porém defendo que todos publiquem o que quiserem/puderem publicar. Alguém sempre vai acabar lendo. Não queria, só, que fosse eu.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

desova de um corpo


Entendo perfeitamente por que Clarice Lispector impressionou-se tanto com O lobo da estepe, de Hermann Hesse. A obra foge à tradicional narração descompensada e fluida que permeia as páginas dos livros de hoje. O texto é dividido em duas partes - a saber: uma nota introdutória do "editor" (personagem que convivera com o Lobo-Harry na casa de sua tia, usada também como pensão, onde o personagem central vivera dez meses) e o relato poético-bêbado-fantástico-alucinado do lobo da estepe -, que são plurinarrativas, sobretudo a segunda parte. O narrador-personagem relata sua vida intempestiva entre o conservador-rebelde Harry Haller e o tímido-agressivo Lobo da estepe. Os extremos discorridos na história mágica não ficam no maniqueísmo. Bem ao contrário, a vida que conduz Harry ao chegar a esta casa é completamente diferente da que levava antes, segundo seu relato. É na dialética, nas várias e incontáveis almas, pontas do leque que ele abre e fecha, que se constrói a intrincada vida do homem cinquentenário, muito similar ao autor Hermann Hesse em vários pontos, rezam por aí. Aliás, o autor está em vários dos personagens desse importante romance da literatura alemã.
...
Eu não estou conseguindo dizer, não estou conseguindo analisar, criticar, fazer meu leitor compreender pelo que passei nesta leitura. Por isso eu não vou chamar esta minha admissão de incompetência, de resenha. E é estranho, mas minha incapacidade de fazer uma sinopse da obra (não consigo, não quero, apesar de sabê-la, a história toda) não me deixa mal. Eu, que gosto de escrever sobre o que leio, que adoro falar bem ou mal do que meus olhos se acostumaram a ler por uns dias, assumo que não posso dizer, porque não quero; porque não quero dividir? porque não tenho palavras? porque não consigo traduzir? Eu preciso inserir um trecho do livro agora.
...


No grande espelho da parede achava-se Harry diante de mim. Seu aspecto não era melhor do que na noite em que, após a visita ao professor, entrou no baile do Águia Negra. Mas aquilo estava muito longe, anos e séculos afastado; Harry havia envelhecido, havia aprendido a dançar, havia visitado o teatro mágico, havia ouvido Mozart rir; já não sentia angústia diante do baile, diante das mulheres, diante dos punhais. Mesmo aqueles medianamente dotados, com o passar de uma centena de anos, atingiriam a maturidade. Examinei Harry demoradamente no espelho: reconhecia-o ainda, continuava ainda a parecer-se um tanto com o Harry de há cinquenta anos, que num domingo de março havia encontrado Rosa nos penedos e havia tirado diante dela o boné de escolar. E no entanto havia envelhecido uma centena de anos após isso, havia cultivado a música e a filosofia, lutara até não poder mais, bebera vinho no Elmo de Aço e discutira sobre Krishna com homens de honesto saber. Amara Erika e Maria, fora amigo de Hermínia, disparara contra automóveis e dormira com a suave chinesinha; encontrara Goethe e Mozart e fizera alguns buracos na rede do tempo e da realidade ilusória, na qual caíra prisioneiro. E, embora tivesse perdido duas figurinhas de xadrez, ainda tinha um magnífico punhal no bolso. Adiante, velho Harry, velho e cansado companheiro. (p. 225)
...
É um resumo de uma parte da história de Harry, esse velho que só apanhava e era incapaz de aprender o novo sozinho e como uma criança, como um adolescente insensato (pleonasmo) recebe as ordens da moça Hermínia ( sim, é também uma sombra do autor) e promete seguir e obedecer tudo o que ela disser.
Eu estou trans(f-t)or(m-n)ado. É isso, nunca escrevi nada tão incoerente. É indizível, mas me dá raiva. Eu sou menor, muito menor que a obra. Preciso voltar a lê-la daqui a vinte anos, o Hermann disse isso na sua nota final. Eu não rejeito o Lobo, somente porque ele não passou pelos meus filtros que me protegem de sofrer, porém atracou-se violentamente ao meu miocárdio, passou direto, como o fez também o Sidarta, mas de modo infinitamente mais atabalhoado.
Não sei se meu leitor me acompanhou até aqui, ou mesmo se quer que eu ainda fale desse livro. Se não, nem sei se publico aqui no Tessitura uma tentativa de escrever essa resenha. Se eu não conseguir, prometo encontrar uma que dê conta, minimamente, da magnitude do texto.
Sempre ele, me engolindo...

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

a tal dissertação (parte I)

Leitores, eu sinto tanta falta de escrever quanto vocês de lerem as coisas que eu escrevo, tenham certeza. Não escrevo mais por puro preciosismo. Eu deveria tratar isso aqui com mais displicência, publicar tudo o que eu quisesse. Só que eu não dou conta. To tentando mudar, sério. Esse texto que segue, eu prometi que só ia publicar depois de uma amiga me dar um retorno sobre as contradições que devem existir nele e eu não vi. Como ela ainda não me respondeu e dois incríveis leitores (Bruna, Renan, não sei como vcs têm saco pra isso aqui, kkkk) me cobraram, decidi publicar logo esse pseudoensaio sobre dissertação. Sabe, tenho refletido muito sobre o gênero e começo a pensar se não é uma boa fazermos um bom uso dele. Enfim, tirem suas conclusões (ou encham-se de dúvidas de uma vez!)
***

Aprendemos há muito tempo na escola a produzir um texto chamado por nossos professores de dissertação. Esse texto, à maneira clássica que sempre fora ensinado, previa algumas regras específicas que jamais poderiam ser violadas pelos alunos-escribas. Durante décadas a escola impôs esse tipo de produção como única alternativa durante o ensino médio. A dissertação também era a vedete dos vestibulares Brasil afora até meados da década de 1990. Mas essa história vem mudando e, com ela, o texto dissertativo.
Mesmo hoje, quando se procura por “dissertação” na internet ou mesmo nos mais atualizados livros de redação, é comum encontrarmos uma série de regrinhas que estipulam como deve ser esse texto. “O texto é impessoal e objetivo”; “não deve ser redigido na 1ª pessoa”; “é preciso apresentar uma tese na introdução”; “na conclusão o autor pode apresentar seu ponto de vista e/ou propor soluções para o problema sugerido pelo tema”, e por aí vai.
Acontece que talvez estejamos atravessando o principal momento da produção textual espontânea da história. Os meios de comunicação, os “torpedos” dos celulares e os gêneros surgidos com o advento da internet são algumas dessas molas propulsoras. Vejamos o que apareceu de novo nessas últimas duas décadas: surgimento do SMS (“torpedo”) com limitação de caracteres – e consequentemente aquilo que chamaríamos “internetês”, a língua das famosas e mal afamadas abreviações –; dos bate-papos – também conhecidos como chats e extensivos aos programas de mensagens instantâneas, como o MSN –; o blog – que alguns consideraram o substituto do gênero diário pessoal, apesar de que hoje isso é completamente discutível –; o scrap do Orkut – um recado pessoal público –; o depoimento do Orkut – gênero agora produzido por qualquer mortal e publicado na internet –; o fórum de discussão – enquetes que se popularizaram e promoveram grandes discussões na net –; mais recentemente o tweet, do site www.twitter.com – conhecido como microblog, o texto é produzido em no máximo 140 caracteres – dentre vários outros que possivelmente margeiam os textos “oficiais” da imprensa, da escola e da rua.
Essa profusão de gêneros influencia mutuamente muitos gêneros cotidianos, e a dissertação – tomada aqui por nós também como um gênero – também recebe a influência dessas produções. No entanto, a dissertação clássica (entendida por muitos ainda hoje como nos moldes aristotélicos) parece ter sofrido influência também do texto produzido no mestrado. A dissertação produzida na pós-graduação começa a ser entendida pelas bancas como um texto de forma não mais tão rígida como em anos anteriores e há vários casos de mestrandos que produziram seus textos em 1ª pessoa e ensaiando ensaios. Essa possível “quebra” da rigidez estrutural e linguística do texto joga sementes ao texto produzido no ensino médio, e tem-se hoje a pleonástica “dissertação argumentativa”. Pleonástica porque supõe-se da dissertação da atualidade a fusão natural dos tipos argumentação e exposição, além dos possíveis outros tipos (narração, injunção e descrição) quando usados como elementos argumentativos.
A dissertação argumentativa, rezam os manuais, é um texto dinâmico do ponto de vista estrutural, porque “permite” que seu autor não se restrinja mais a emitir sua opinião apenas na conclusão. Já do título ele pode enviesar sua discussão.
Ainda assim, as limitações que o professor de língua portuguesa e redação impõe aos alunos quanto à forma (estruturas paragrafal e gramatical), mantêm-nos sob o jugo da tríade “introdução-desenvolvimento-conclusão”, que funcionam como esqueleto do discurso argumentativo de modo geral, e dos recatos da tese introdutória. Não enxergam realmente que as estruturas praticamente ruíram e que os clichês sobre como fazer estão fora de contexto, além de limitar o ímpeto discursivo de que todos, pelos menos um pouco, possuímos.
Nossa proposta para o gênero dissertação escolar pressupõe o risco de “quebrar a forma” em busca de um discurso que não seja estruturalmente racionalizado, mas antes intuitiva e naturalmente constituído a partir desta situação discursiva: “escrever não para o professor ou corretor, mas para o leitor comum do jornal, da revista, da tevê e da internet”. A proposição do tema engloba o aluno enquanto “receptor de conteúdo de várias frentes” e enquanto “sujeito-pensante que precisa expressar suas ideias para o mundo”.
Esbarramos, contudo, na obrigatoriedade da entrega da produção em prazos escolares e na “correção” do texto sob uma ótica ainda gramaticista e horizontal. Ou seja, o conceito recebido pelo aluno de zero a dez e os critérios básicos de avaliação do texto (adequação a: tema, coletânea, gênero e língua. Além da análise da dicotomia coerência/coesão) são parte da rotina da sala de aula que precisam urgentemente de reescrita/reinterpretação/revisão. O texto dissertativo precisa (mais até que outros gêneros) ser visto como espaço de invenção e discussão do sujeito aluno com o mundo. Sua parcela de contribuição para os debates da polêmica atualidade à filosofia mais abstrata precisa ser enxergada mais do que a “tarefa” ou “dever”. A redação precisa ter mais visibilidade, o professor tem que incentivar a produção do jornal da escola, enviar o melhor texto da sala para a seção de cartas do jornal (que hoje estão longe de ser entendidas como gênero interlocutório explícito), publicá-la no mural da instituição, inseri-lo como bom exemplo no material repassado ao aluno para que outros leiam. O texto precisa ter uma função maior que a da mera avaliação.
Sugerimos aos alunos que a máxima “só escreve bem aquele que lê bastante” é uma meia verdade e que o certo seria avaliar a qualidade da leitura acima da quantidade. Também os incentivamos a copiar recursos que deram certo em textos publicados no cotidiano e os inserir com as próprias palavras em suas dissertações. Encorajamo-los à plurivocidade, ao reconhecimento dos vários discursos e vozes do mundo e o aproveitamento desses entrecruzamentos para a criação de um discurso “novo”, mesmo sabendo que, como disse o poeta Augusto de Campos: “tudo está dito”.
Acontece que nesse mesmo poema, o poeta sugere que “tudo” é uma palavra e que essa palavra tende ao sem-fim: “tudo é infinito”, pois “nada é perfeito” e aí “eis o imprevisto”. É nisto que acreditamos: que o aluno precisa dissertar com liberdade para que seu discurso tenha validade no mundo fora dos muros escolares.

Continua...

domingo, 8 de agosto de 2010

os autômatos de asimov

O clássico da literatura de ficção científica Eu, robô, do escritor, ensaísta, estudioso de ciência  pura a Shakespeare, russo Isaac Asimov foi escrito na década de 30 do século passado. Faz um bocado de tempo. No entanto, a leitura dos contos nos arremessa para um mundo ainda à frente do nosso mas com um monte de quinquilharia tecnológica a menos, já que daqui trinta anos (quando se passa boa parte dos contos) a tecnologia será útil e a utopia criada por Asimov não produzirá tanto lixo, apenas ficará defasada, como toda tecnologia um dia está sujeita.
Como acontece em muitos casos, há um filme homônimo estrelado por Will Smith, de 2004. Entretanto, fora as três leis da robótica, os personagens Susan Calvin e Alfred Lanning, não há muito em comum entre as obras, o filme não é uma adaptação de nenhum dos contos, é mais uma história em separado utilizando a mesma plataforma do livro, como se fosse "um conto a mais".
retirado do site nerdicepontocom.com
O melhor na boa ficção científica não é só o mundo criado que sabemos não existir - ainda - ou toda a parafernália tecnológica que geralmente envolve os temas. A capacidade de recriar os problemas que se enfrenta hoje num mundo paralelo ou futuro a este é que mais chama a atenção. E isso acontece até em demasia em Eu, robô. Os primeiros contos são altamente cativantes, como em Robbie, quando temos a nítida sensação de compartilharmos o mundo com a personagem central. Mas à medida que os contos avançam, entram numa espécie de filosofagem arguta (não querendo diminuir a importância da pensação em histórias assim, ao contrário) que acompanha o leitor até a última linha. Ou seja, quando se senta esperando ler ficção científica, o óbvio é quase sempre o que se espera: robôs convivendo com humanos, problemas com aqueles que não acreditam nos robôs, robôs maus, má articulação psicológica dos autômatos, entre outros. E, sim, é possível ver tudo isso nos contos, só que se espera mais ação e menos "conversa", o que não ocorre.
Cabe dizer que o nome robótica foi criado por Asimov e não será estranho se um dia convivermos com esses seres e eles tiverem três diretrizes que os impedem de fazer mal aos humanos, pelo menos em tese, como criou o escritor. A relevância da obra é tão reconhecida mundialmente, que o primeiro robô humanoide a ser lançado pela Honda em grande escala para o serviço doméstico chama-se, compreensivelmente, Asimo, uma homenagem mais do que merecida.
O trunfo do livro não é a técnica literária. Não é esse o cerne da questão (E é, somente, em alguma?). A criação da literatura vincula-se estreitamente à capacidade de reinventar o mundo e sua linguagem. Pode-se dizer que no último quesito não há nada excepcional em Eu, robô, apesar de muito boa linguagem. No entanto, no que se refere à reinvenção do mundo, Isaac Asimov nos enche de curiosidade, esperança e, por que não, otimismo.

terça-feira, 6 de julho de 2010

confúcio

Bem, como estou de férias e não quero perder a mão não escrevendo, vou resenhar também alguns filmes que estou assistindo nesse meu ócio criativo. E o primeiro filme que será brevemente analisado é Confúcio. Vamos à resenha!
*
Qualquer pessoa que goste de aforismos já deve ter lido pelo menos um do pensador, professor e gente boa chinês Confúcio (Kong + alguma coisa em chinês que significa professor). A obra, dirigida pela esperta Hu Mei, se passa em meados de 480 a.C. e traz no papel do mestre o ator Chow Yun-Fat (dentre outros filmes, O tigre e o dragão). Estranho, porque geralmente ele faz filmes envolvendo muita ação e violência. Dizem que o filme em que mais morre gente a bala é com ele (Fervura máxima), mais de quatrocentos!
O filme é na verdade uma biografia e conta os instantes mais importantes da vida do filósofo chinês, do momento em que atua na política, deixando de ser um mero professor, até seus momentos finais. Como bom articulador eloquente que era, colocava batatas quentes nas mãos de todos os líderes que se lhe afiguravam e esses acabavam se dobrando diante de seu aprumado e ético discurso.
O filme é recheado de várias passagens inteligentes do filósofo, ensinamentos, lições de vida todos eles de algum modo ligados à ética e civilidade.
A relação das ideias de Confúcio com as de Thomas Morus (Utopia) são perceptíveis, pois os dois vislumbravam uma sociedade em que o povo, o governo e as outras cidades pudessem manter uma profunda relação de respeito, estabilidade emocional e fuga dos instintos beligerantes humanos.
O filme é muito bonito. A fotografia é uma questão muito valorizada no recente cinema chinês e é muito raro ver algum filme daquela região que não se destaque nesse quesito. 
Quem gosta das passagens de Confúcio, da lógica racional com que pronunciava suas meditadas palavras, vai ver nesse filme que a vida do pensador não foi fácil, com várias perdas significativas, exílio por vários anos, fome, mas muita sabedoria e humildade.

terça-feira, 29 de junho de 2010

descortinando os vários véus


Sidarta, Govinda, Buda, Kamala, Kamavasmi, Vasudeva e Sidarta. Esses são os personagens, em ordem de aparição, que fazem parte ou cruzam o caminho do personagem principal de um dos mais belos romances (e um dos últimos românticos) da literatura alemã: Sidarta, de Hermann Hesse.
A obra é curta, tem pouco mais de cem páginas, um enredo simplificado, mas de profundidade imensurável. O personagem central inicia a história um jovem brâmane – a mais alta casta da estratificada sociedade indiana – que decide ir em busca de algo que lhe tape um buraco na alma. Na narrativa o leitor é colocado diante de um personagem lindo, rico em sabedoria, perspicaz em suas ideias de cunho altamente filosófico e que se sente incompleto.
Um dia, um grupo de samanas (pessoas que negam qualquer apego material e enxergam nosso mundo apenas como um mundo de ilusões e aparências. Vivem de esmolas e com o mínimo para a sobrevivência) aparece próximo de onde vive o jovem Sidarta e seu melhor amigo e seguidor, Govinda. Sidarta então decide ir ter com os ascetas no dia seguinte. Avisa ao amigo que renuncia à vida de brâmane para seguir os samanas e com eles encontrar o que lhe falta no espírito. Govinda, fiel apaixonadamente, decide acompanhá-lo. Por anos, Sidarta e Govinda aprendem o modo de vida dos samanas e entendem que o mundo é um local apenas de aparência, que o desapego total da matéria é que pode desvincular o espírito do corpo (nirvana). Sidarta então aprende o que lhe é de mais valioso: meditar, jejuar e esperar.
O personagem segue essa vida até encontrar o próprio Buda num parque doado por pessoas que agora o seguiam, onde seu amigo Govinda decide ficar. A jornada de Sidarta recomeça e, conhecendo o mundo real dos homens tolos, aprende a arte do amor com Kamala, dos negócios com Kamasvami e dos vícios. Até ter outra epifania e deixar tudo outra vez.
Ele então reencontra o balseiro Vasudeva que um dia lhe dera abrigo quando ele abandonara os samanas e o próprio Govinda. Dali em diante ele decide viver com Vasudeva, o homem que ouvia o rio e ensina-lhe isto: a ouvir o que o rio, indivisível, senhor do tempo, do passado, do futuro e do eterno presente, tem a dizer, e ali talvez tenha aprendido ou criado sua própria doutrina.
Depois de aparentemente em paz, cai em sua vida um menino, cuja mãe era Kamala, também chamado Sidarta. Kamala morre no leito da choupana de Vasudeva e Sidarta agora tem consigo um desafio: cuidar de um menino mimado, criado à boa vida e que desrespeita o primoroso pai.
O desenrolar a partir daí é outra reviravolta na vida do personagem central da obra, que após tantas descobertas e redescobertas sobre si e sobre o significado de sua existência, chega a uma conclusão sobre o que poderia ser uma doutrina de vida.
Recomendadíssimo para espíritos irrequietos e pessoas que têm sensibilidade a ser trabalhada. É impossível passar por essa leitura sem compreender a complexidade de um mero gesto de mão ou os múltiplos e infinitos significados de um olhar e de um discreto sorriso. Um mergulho dentro de si é o mínimo de ocorre após a leitura desse belo clássico.

terça-feira, 22 de junho de 2010

o símbolo perdido

      Depois do enorme sucesso de O código da Vinci, Dan Brown escreveu mais uma obra sobre mistérios, religião, investigação criminal, ciências ocultas e blá-blá-blá. O nome da obra é o do título desta resenha. 
      O enredo envolve novamente o professor simbologista de Harvard Robert Langdon numa trama daquelas tipo Identidade Bourne, só que sem a pujança da trilogia de Matt Damon. A história se passa nos EUA, mais precisamente em Washington, e em umas 20 horas mais ou menos. O livro tem quase quinhentas páginas - que poderiam reduzir-se a umas 150 - mas a leitura é fluida. Primeiro que não há muito a refletir sobre a linguagem. Ao longo do livro, é possível contar o verbo "aquiescer" umas cem vezes. Aliás, dá até perder a conta. Nos dez primeiros capítulos do livro, toda hora os personagens aquiescem. Caso você não saiba o significado disso, é o mesmo que "concordar a contragosto", "anuir", "ser condescendente". A impressão que fica é que o autor só conhece essa palavra, ou seus personagens só têm essa ação. Segundo, que a fórmula usada pelo autor lembra a das novelas brasileiras: ao final de um capítulo, um suspense. No início de outro capítulo, outro assunto que não aquele do suspense. Manjadíssimo.
      Na resenha do livro consta que Brown é tido hoje com o maior escritor policial da atualidade. O que mostra que o mundo está carente de bons escritores do gênero às vistas do grande público.
         Uma coisa aproxima demais Dan Brown de Paulo Coelho: ambos falam de misticismo, de assuntos "proibidos" (a obra em questão "revela" o mundo da francomaçonaria), ciência "apócrifa", de um modo bem cru, rude. A palavra certa é pobre. O escritor americano se atém aos fatos da narrativa dele, mas não há o vislumbramento literário, não há o desvelamento que a escrita bem arranjada pode proporcionar. O texto, assim como no Código..., é mais um grande roteiro de cinema (com direito a merchandising pra todo lado) do que um romance propriamente dito. O autor beira a infantilidade ao colocar os pensamentos dos personagens em itálico, caso não consigamos compreendê-lo... Isso sem falar nas palestras proferidas e diálogos. Parecem todos iguais, e há pelo menos duas palestras nessa obra, uma do protagonista e outra de outro personagem envolvido: Peter Solomon, um importante maçom norteamericano curador do museu Smithsonian.
         Não fosse o assunto ser interessante ("os pensamentos têm massa", by noética), a leitura é mais perdida que o símbolo; porque de literatura ali, há pouco.

novo trabalho

Todos que me conhecem sabem que sou chegado numa resenha. Acho o gênero interessante, leio muitas e, para praticar a escrita e registrar meus pensamentos sobre o que leio (e leio de tudo), vou começar - a partir de hoje - a redigir resenhas sobre os livros que ando lendo. Como vou começar hoje, não vou falar de livros que li há muito tempo, exceto quando relê-los, atividade de que gosto muito. Inclusive no momento estou relendo pela terceira vez o livro Sidarta, de Hermann Hesse. 
Mas pra início de conversa, vamos com um "besta-seller", que li porque sou curioso sobre os temas tratados no livro. O autor? Dan Brown. O livro? O símbolo perdido. Alguns devem me criticar por perder meu precioso tempo com não-literaturas; pode falar mal, tem problema não. Eu me defendo na resenha. 
Té mais tarde.

sábado, 19 de junho de 2010

não era mais um josé

Eu não vou dizer nada de novo aqui. Não haverá surpresas no meu texto de despedida a Saramago. Aliás, eu até gostaria. Gostaria de levar meus leitores a um mundo imaginado em uma jangada gigante de pedra, onde lá fosse casa dessa gente toda. Ou ao universo de um professor que encontra um outro de si na rua. E não eram clones. Queria despertar-me da caverna platônica onde me puseram quando vim para este mundo e ter a força de acordar aos demais, ainda que me chamem louco. Queria transportar quem me lê até uma ilha desconhecida, e desse, para quem se arriscasse a ir lá, o prazer utópico de um mundo humano. Acharia muito bom ser capaz de contar a história de Jesus numa visão ateia e revolucionária sem soar anticristo. Conduzir os outros pela cegueira branca, rasgando o caminho por ver tudo a frente de muita gente boa. Mas eu não posso. E a morte desse escritor tão pungente, tão tenaz só reforça o quanto ainda tenho de ler para crescer um cadinho de barro intelectualmente.
Saramago me transportou para esses lugares e situações todas. Me fez acreditar nos seus personagens. Recriou meu modo de entender a literatura. Eu faço – agora – reverências a você, mestre literário; com certeza o mundo fica mais burro agora, como bem disse o Fernando Meirelles.
*
“Saberíamos muito mais das complexidades da vida se nos aplicássemos a estudar com afinco as suas contradições em vez de perdermos tanto tempo com as identidades e as coerências, que essas têm obrigação de explicar-se por si mesmas.”
A caverna, p. 26. José Saramago


terça-feira, 15 de junho de 2010

vuvuzelando

Toda Copa é igual. Ou pelo menos começa igual. A gente torce pelo Brasil, se enche de esperança, bate no peito a mão no escudo da camisa canarinho, chora, grita, bebe, xinga, reza, canta o hino (ou parte dele). E, quando o Brasil perde, a gente fica praguejando um mês sobre o maldito técnico que não escalou aquela seleção (mistura de Corinthians com Santos), sobre os jogadores terem feito corpo mole, sobre essa copa ter sido “arranjada” (leia-se vendida), sobre esse país não ir pra frente, sobre tudo.
Embebedamo-nos de um falso patriotismo que só atinge o país nessa época e, minimamente, nas Olimpíadas. Pelo menos a gente gosta de esporte. Mas o que mais me deixa grilado nem são aquelas malditas vuvuzelas vuvuzelando durante todos os jogos e durante todo o jogo. Nem é da alegria excessiva do povo sul africano outrora vítima do apartheid, hoje vítima dos resquícios dessa política. O que mais me deixa inconformado é de a gente só acreditar na gente, representada por aquele bando de mercenários jogadores “estrangeiros” que não pisam aqui pra quase nada, nessa época festiva. O país para (e nem acho que deveria ser diferente) e assiste confiante de que dessa vez, mais uma vez, o Brasil vai pra frente. Le(ve)do (de cerveja) engano.
Quando ganhamos em 1994 ou mais recentemente em 2002, o que nos ocorreu depois foi a ressaca “temos-o-caneco-e-agora-o-que-a-gente-faz?”. Sabe cachorro que cai da mudança? É o povo depois da Copa. Ganhando ou perdendo, o brasileiro não aprenderá a valorizar o sentimento de amar o país sobre todas as coisas ou em detrimento dos outros, como já ocorre com a Argentina. Que avalanche de propagandas engraçadinhas insuflando a xenofobia é essa que tomou conta da tevê? Já não bastam as piadinhas sobre argentinos que circulam pela internet agora temos de odiá-los? Ou, no mínimo, zombar deles como se fossem seres inferiores a nós? Legal isso vindo de um povo “patriota”, porque é tudo o que um continente precisa pra crescer frente ao mundo lá fora: desunião.
A gente precisa aprender a confiar no nosso potencial pessoal, não por causa do país ou da nossa cultura tão festejada pelos gringos. Precisamos é olhar ao redor e dar as mãos, não como nação, mas como humanos. A gente pertence à mesma nação: a humanidade.
Gosto de futebol, não nego. Mas mais do que torcer pelo meu país, prefiro torcer pela festa como uma grande confraternização que une bilhares de pessoas à frente da tevê e pode servir como palco para divulgar as diferenças entre os povos como uma qualidade a ser preservada para os tempos pós-competição, não como motivo para desunião. 

domingo, 9 de maio de 2010

contodenovo

Possessiva mimética


  Eu não posso me queixar de sua devoção por mim. Ela simplesmente abandonou a vida pra me fazer de tudo. Eu me pergunto todos os minutos do dia por quê. Depois de ter abdicado de sua própria vida com o sólido argumento de que nada mais no mundo fazia sentido, apenas meu ser, meu bem-estar e meu prazer, ela fazia tudo pra mim. Naquele dia mesmo, me preparou um café da manhã espetacular, cujo outro igual só encontrei uma vez num hotel cinco estrelas onde fiquei hospedado. Ainda ministrava cursos naquela época.
 Inclusive foi numa palestra que eu a encontrei. Durante um seminário meu sobre Possessividade Múltipla Imaterial – minha tese de doutorado – dei um exemplo aleatório e deparei-me com seus olhos, de certo jeito, familiares. Até cheguei a pensar que fosse uma colega de faculdade comprovando meu brilhantismo acadêmico, agora fora das cercanias da universidade, me admirando como homem despojado e de voz boa, potente, semi-grave ou mesmo me invejando. Seja lá o que ela estivesse fazendo, no final da palestra, durante o coffe-break, ela se aproximou e me disse que me conhecia de algum lugar. Nem mesmo me elogiou ou cumprimentou. Antes mesmo de eu pensar na cantada inócua clássica que é essa pergunta de aproximação, eu concordei com ela, por ter tido a mesma impressão. Depois dos beijos quentes de duas horas depois, ficou comprovado que não nos conhecíamos de lugar nenhum, que simplesmente éramos um do outro. Ainda naquela noite dormimos juntos e eu tive certeza, como nunca na minha vida, de que ela era uma mulher muito mais que simpática. Não é bela, como se vê na televisão as modelos, mas é um tipo que os homens se interessam, olham e muitas vezes testam. Pra falar a verdade, ela é do tipo que os homens chegam com facilidade porque imaginam pelo seu físico e olhar de entrega que ela não é das mais difíceis de ganhar. Enganam-se. Ou não.
  Nos casamos há dois anos. Tivemos o melhor casamento de que eu ouvi falar. Nem histórias de fadas contam com tanta imaginação as coisas que já vivemos juntos. O nosso casamento se deu como na forma do nosso conhecimento, rápido e apaixonado. Foi um casamento de namoro curto. Era cada palavra, cada suspiro, cada besteira dita, cada fio de cabelo e pinta no corpo o mais perfeito sinal de que éramos únicos e fabricados um pro outro. Não me esqueço do olhar durante a palestra. Eu que nunca vi os olhos de ninguém. Eu que nunca havia comido ninguém nesses cursos. Eu que sempre soube que minha figura representava algo a mais para algumas mulheres, afinal, a fala é poder, o discurso é atraente e os trajes e a barba bem feita e a entonação e as brincadeiras também. Tudo isso é muito sedutor e eu sempre soube disso. Quanto mais mulheres chegavam até mim propondo algum tipo de loucura, mais eu me desvencilhei e, naquele momento, comprovava que estava sendo eficiente o meu propósito de imagem. Também quando homens vinham ter comigo, certamente era pelo mesmo motivo, a sedução que quem discursa revela. O meu assunto tratado sempre foi muito interessante, mas era um produto que eu vendia e sempre pesei pelas mulheres e homens que vinham até mim depois do curso o quanto eu estava sendo eficiente com ele. No dia em que a vi, vendi como sempre o meu produto. Inconscientemente, porém, eu já a desejei desde o momento em que seus olhos pretos perfuraram a redoma que me protege dos desarmes. Um homem veio. Falou o trivial. Duas mulheres vieram. A primeira também foi banal, falou um básico. A outra era ela. E por mais estranha que fosse aquela aproximação (as pessoas sempre vinham falar do que falei), eu cedi de imediato, como que enfeitiçado.
  Gosto de recordar dos momentos subsequentes. Foi tudo tão rápido. Eu comentei com ela o quanto parecia que os segundos demoravam a passar, parece mesmo que estávamos aproveitando tudo e que nosso casamento demorou séculos pra acontecer. E não, foram duas semanas apenas.
  Eu não podia prever o que viria a acontecer. Algo que se chama “estacionamento” pode se aplicar à vida das pessoas. Pessoas que estacionam. E quando falo delas não me refiro imediatamente às que nada fazem, só às que fazem para ficar paradas. Ao nosso lado. Minha esposa tornou-se, a cada dia, uma espécie de escrava voluntária. Parece que fui achando-a muito esquisita, meu desejo diminuía e cada dia mais seus seios pareciam murchar de tristeza. Logo eles, aqueles seios que tanto beijei, me resfoleguei, tanto me aconcheguei a eles, hoje pareciam duas maçãs enrugadas. E não que estivessem velhos, nem mesmo ela. Todos os dias alguém vinha me dizer da beleza da minha esposa, da minha mulher. Beleza que eu não via mais, ela era um tipo comum e de comum a feio e de feio a insuportável. Essa escrava que me alimentava, me lavava todas as roupas, me colocava as roupas no corpo, dessa mulher que ainda resta algum bom sentimento meu por ela, eu não a possuo mais. Ela mesma é que me possui, do jeito dela, desse jeito estranho e incomum que não me permite conhecer outras pessoas, porque sinto pena daquela coitada que vai custar a morrer. O escravo possuindo seu dono, quanta ironia.
  Algumas vezes tirar-lhe a vida passou pela minha cabeça como um fato, como algo que logo deveria ser feito. Nunca tive hombridade, coragem e lealdade a meus princípios o suficiente para executar minha vontade. Parece que ela tinha o corpo fechado. Estive duas vezes marcando encontro com assassinos profissionais que deveriam me livrar desse entojo, mas não concretizei nada, reclamei do preço como desculpa e nada fiz.
Preço nunca foi empecilho pra mim. Dinheiro eu rasgo com o dente. E ela nunca me pediu nada... eu é que tenho de oferecer coisas a ela que, humildemente, aceita com os olhos baixos e tristes, como se não merecesse. Nas festas em que devo estar acompanhado, sempre parte de mim a atitude de comprar um vestido novo, um sapato, uma bolsa... ela nunca toma essa atitude. Vejo todos os meus amigos me tecendo loas pela magnífica esposa que tenho, que todos eles queriam ter uma mulher como essa, já que estão casados com umas megeras que só os exploram e se caricaturizam com tinturas, plásticas, produtos ácidos na cara, enquanto minha “bela” esposa continua como um figo, linda, morena, humilde. Comparados aos olhos dos outros os nossos próprios filtros dos olhos ficam alterados.
  Achei por muito tempo que meus amigos a desejavam. Esse risco eu não corria, ela era minha demais pra ficar com algum de meus amigos. Ela se doava pra mim demais, era impossível que alguém rompesse aquela incorruptibilidade pela causa escolhida e defendida por ela: eu. Nunca pensei que tivesse algum dia esse poder todo, essa semelhança com um deus pra alguém. Nunca pensei, do alto da minha arrogância, que me tornaria um semideus. Nas minhas palestras eu achava que era um profissional competente, do qual todos gostavam de ir ver, de quem a maioria se enchia de motivação e perguntas a ser respondidas com o meu livro. Não muito mais do que isso, nunca achei que pudesse causar uma doença a alguém.
  Temo que minha mulher não tenha volta. Temo por sua vida. Temo que se houver uma separação, além de ter que ser à força, ela não possa sobreviver. Parece que o vínculo estabelecido por ela se transformou em elo, e elo, ainda que quebrado, mesmo que depois consertado, nunca mais é a mesma coisa, além de não ser mais confiável ainda possui um calo em si, um calo visivelmente defeituoso.
*
  Como ao abrir a caixa de Pandora, vejo no fundo uma esperança: a de me redimir perante a mim mesmo ou ao de dar cabo, também eu mesmo, nessa rocha que se calcificou à minha perna e que, a cada dia, como sedimentação, aos poucos se apodera de mim inteiro. Como fui deixar as coisas chegarem até aqui? Qual meu defeito não pude perceber a tempo para evitar que essa coisa se apoderasse do meu corpo como um espírito se apodera de uma matéria viva?
  Tomei uma decisão, ela precisa de tratamento de choque. Preciso fazer com que ela se anule, definitivamente. E só há um jeito de atingi-la. Atingindo-me. Vou cortar meu braço com um facão. É isso, aqui no antebraço, no meio, vários golpes até rachar o osso e partir a pele, os tendões, os músculos, as veias, as artérias. Depois, quando ela chegar aos meus gritos, estará terrificada com a cena na cozinha. Eu, ajoelhado, de calça preta de linho, sapato preto italiano, camisa branca arregaçada até os cotovelos, a gravata vermelha de listras jogada para trás do pescoço, o facão no chão ao lado do meu corpo, meu antebraço destroçado na mão direita, erguido como um troféu de uma maratona, todo o sangue empoçando a mim e o meu redor e minha cara contorcida pela dor, pelo prazer da vitória, pelo desgaste da luta, o olhar voltado para ela em regozijo e pena e o desmaio depois da cena.
  Agora estou no hospital. Ela deve ter tomado as providências. Logo vai vir aqui e me encher de perguntas sofridas, para eu explicar o que aconteceu, por que fiz isso ou se foi alguém. Vou dizer: foi você. Vou te denunciar à polícia, vou dizer. Daqui a pouco aparecem enfermeiras para aplicarem remédios no soro que espeta pela agulha o meu braço bom. Medicamentos para aliviar a dor, diz a enfermeira. Deixa a dor, eu digo, ela comprova que eu tenho controle sobre minha vida. Um homem de branco se aproxima. A cirurgia foi um sucesso e conseguimos fechar bem o ferimento. Alguns procedimentos de cirurgia plástica reparadora, talvez algum enxerto para segurar melhor a prótese futura serão necessários daqui a algum tempo, disse o cirurgião alegremente, mas sem tirar os olhos do prontuário. Aliás, as duas cirurgias foram um sucesso, ele emendou. Eu não ia dizer nada, mas fiquei curioso sobre que outra cirurgia eu teria feito. Sua não, da sua esposa, disse ele. O corte no braço dela fora ainda pior do que o do senhor, ela estava tomada de adrenalina então cortou-o com mais rapidez, estraçalhando-o com mais força, e não desmaiou, ligou para a emergência falando alto, mas sem chorar. Eu recomendei o psiquiatra para o senhor e para ela, o dr. Mourão deve chegar daqui a pouco para fazer uma avaliação com o senhor, tudo bem? depois com ela. A gente tem que cuidar da cabeça também, não é? perguntou o médico num tom infantil, analisando o curativo e sussurrando para a enfermeira sobre o esparadrapo mal pregado. Eu não podia acreditar no que estava acontecendo. Quer dizer então que minha mulher havia também ela cortado o próprio braço?
- Oi amor, disse minha mulher meiga quando fui levado à enfermaria para ficar ao seu lado. O mesmo braço, o curativo no mesmo lugar.
  Quantas partes de mim terei de arrancar para arrancá-la de uma vez de mim?

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Hipercompartilhamento


Hiperconcorrência, palavrinha surgida nos últimos tempos para amplificar aquilo que já é um problema em si: a concorrência. O mundo capitalista admite que a concorrência é importante para o crescimento econômico do mundo, pois é ela que fornece opções para o consumidor comprar melhor. É ela também que faz os animais sobreviverem na natureza, quando derrotam os demais numa luta evolucionista. Ainda a vemos no esporte, quando os atletas superam suas dificuldades nas provas em que têm de derrotar outros atletas para ser considerados vencedores. Somos concorrentes por natureza, pelo visto.

Tenho notado, também, que a concorrência tem sido estimulada na escola. Hiperestimulada, quer dizer. É comum ouvirmos de pais, educadores, alunos e não alunos que é preciso superar a concorrência para conseguir um lugar ao sol. A perspectiva deixou de ser “garantir a minha vaga” para “derrotar os outros para me garantir”, como se estivéssemos na selva e só houvesse uma presa para nós e dezenas de outras feras. Acontece que não somos feras. E não estamos na selva – ou não deveríamos estar. Muitos professores têm usado este argumento com seus alunos: “enquanto você conversa, enquanto você está no cinema, enquanto você se diverte, seu concorrente está estudando para tomar sua vaga!”.

Devemos considerar ainda o sistema desleal de educação no Brasil, que privilegia aqueles que melhor acumulam um sem-fim de conteúdo (que vai além, muito além do necessário para um menino de dezesseis anos) em detrimento do pensamento individual próprio. O discurso de “ensino massificado” está mais que repisado, nem quero ater-me a ele. Mas parece que quanto mais reflexões fazemos sobre a educação brasileira, quanto mais discutimos o tema nas faculdades de licenciatura, quanto mais entendemos o que deve ser feito, mais o “mundo real” das escolas particulares e o distorcido vestibular nos conduzem ao massacre intelectualoide. Estamos enfileirando nossos alunos no moedor de carne da hiperconcorrência. Ela não só estimula os meninos a estudar mais, a ter maior responsabilidade sobre suas vidas, como os desumaniza na medida em que prega que não é simplesmente uma disputa, é bem além disso: vamos brincar de super-homens!

É incrível como o discurso de “sobreviva ao massacre” apregoado pelas grandes escolas elitizadas do país, em especial as goianienses, é repassado às menores escolas até chegar no mais rústico piso do que se pode chamar de educação: as escolas públicas das periferias das periferias das periferias. De um lado, lousa eletrônica, ensino bilíngue e acompanhamento psicológico. Doutro, meninos sentados em cadeiras improvisadas, em salas de ensino fundamental e médio em turnos diferentes, de alpargatas rasgadas e pés imundos do universo sem asfalto. E todos querendo salvar vidas num futuro próximo.

A minha maior preocupação nem é tanto com o futuro desses jovens, porque uma hora eles acabam percebendo que o mundo real não é bem aquele apregoado no terceiro ano ou no cursinho. É pior, e grande parte da culpa de ele ser assim é que um dia alguém falou que era certo concorrer, mesmo que se usasse a cabeça dos outros como degraus para “subir na vida”. A minha maior preocupação é com o que se diz hoje na sala de aula como sendo o certo. Com a imagem que é passada adiante como sendo a verdadeira: a de que o mundo é injusto e “salve-se quem puder”. O mundo é injusto, no entanto, como dizia Drummond, vamos de mãos dadas, que é melhor, que é mais fácil.

A ideia estonteante (para não dizer estúpida) de ter mais de quarenta aulas por semana em Goiânia passa aos olhos dos pais e dos donos de escola como a situação mais normal que possa existir. “Quem quiser passar no vestibular bem, tem que estudar mais que os outros”. E não é “mais” de qualidade, de estudar melhor, é “mais” de quantidade. 40 aulas por semana? Isso é um disparate! Por que os meninos noutras bem sucedidas escolas do país têm no máximo 30 aulas por semana e passam tão bem no vestibular como nossos meninos? O problema é só o gargalo do vestibular? Garanto que não. Esse assunto rende um outro artigo.

Eu quero, então, propor que não enxerguemos mais os outros como concorrentes, mas nós mesmos, as provas que fazemos, o mundo injusto... eles são nossos concorrentes! Pessoas não concorrem, pessoas dignas correm. E juntas. Proponho também que não vejamos aquele cara da nossa área, do nosso curso, como alguém que vai tomar nossa vaga; no entanto alguém que dividirá um espaço conosco num futuro próximo.

Meu texto é utópico, sei disso desde o título. Sei disso desde o primeiro insight que tive sobre o tema para escrevê-lo. E quem foi que disse que não há espaço para a utopia no mundo atual? Quem determinou a regra de que não podemos mais visar o impossível, o inalcançável, o inatingível, o que faz da gente mais do que meros ratos de laboratório correndo em suas esteiras circulares e gerando energia para quem os faz de cobaias? Como estudantes, como educadores, como pais nós podemos orientar humanos a serem humanos não-hiperconcorrentes, mas tão somente humanos em contato direto com a incerteza que faz a gente ser melhor do que podíamos ser um dia. Porque só a certeza não garante nosso crescimento. Que tal pensarmos no hipercompartilhamento?