quinta-feira, 1 de abril de 2010

Hipercompartilhamento


Hiperconcorrência, palavrinha surgida nos últimos tempos para amplificar aquilo que já é um problema em si: a concorrência. O mundo capitalista admite que a concorrência é importante para o crescimento econômico do mundo, pois é ela que fornece opções para o consumidor comprar melhor. É ela também que faz os animais sobreviverem na natureza, quando derrotam os demais numa luta evolucionista. Ainda a vemos no esporte, quando os atletas superam suas dificuldades nas provas em que têm de derrotar outros atletas para ser considerados vencedores. Somos concorrentes por natureza, pelo visto.

Tenho notado, também, que a concorrência tem sido estimulada na escola. Hiperestimulada, quer dizer. É comum ouvirmos de pais, educadores, alunos e não alunos que é preciso superar a concorrência para conseguir um lugar ao sol. A perspectiva deixou de ser “garantir a minha vaga” para “derrotar os outros para me garantir”, como se estivéssemos na selva e só houvesse uma presa para nós e dezenas de outras feras. Acontece que não somos feras. E não estamos na selva – ou não deveríamos estar. Muitos professores têm usado este argumento com seus alunos: “enquanto você conversa, enquanto você está no cinema, enquanto você se diverte, seu concorrente está estudando para tomar sua vaga!”.

Devemos considerar ainda o sistema desleal de educação no Brasil, que privilegia aqueles que melhor acumulam um sem-fim de conteúdo (que vai além, muito além do necessário para um menino de dezesseis anos) em detrimento do pensamento individual próprio. O discurso de “ensino massificado” está mais que repisado, nem quero ater-me a ele. Mas parece que quanto mais reflexões fazemos sobre a educação brasileira, quanto mais discutimos o tema nas faculdades de licenciatura, quanto mais entendemos o que deve ser feito, mais o “mundo real” das escolas particulares e o distorcido vestibular nos conduzem ao massacre intelectualoide. Estamos enfileirando nossos alunos no moedor de carne da hiperconcorrência. Ela não só estimula os meninos a estudar mais, a ter maior responsabilidade sobre suas vidas, como os desumaniza na medida em que prega que não é simplesmente uma disputa, é bem além disso: vamos brincar de super-homens!

É incrível como o discurso de “sobreviva ao massacre” apregoado pelas grandes escolas elitizadas do país, em especial as goianienses, é repassado às menores escolas até chegar no mais rústico piso do que se pode chamar de educação: as escolas públicas das periferias das periferias das periferias. De um lado, lousa eletrônica, ensino bilíngue e acompanhamento psicológico. Doutro, meninos sentados em cadeiras improvisadas, em salas de ensino fundamental e médio em turnos diferentes, de alpargatas rasgadas e pés imundos do universo sem asfalto. E todos querendo salvar vidas num futuro próximo.

A minha maior preocupação nem é tanto com o futuro desses jovens, porque uma hora eles acabam percebendo que o mundo real não é bem aquele apregoado no terceiro ano ou no cursinho. É pior, e grande parte da culpa de ele ser assim é que um dia alguém falou que era certo concorrer, mesmo que se usasse a cabeça dos outros como degraus para “subir na vida”. A minha maior preocupação é com o que se diz hoje na sala de aula como sendo o certo. Com a imagem que é passada adiante como sendo a verdadeira: a de que o mundo é injusto e “salve-se quem puder”. O mundo é injusto, no entanto, como dizia Drummond, vamos de mãos dadas, que é melhor, que é mais fácil.

A ideia estonteante (para não dizer estúpida) de ter mais de quarenta aulas por semana em Goiânia passa aos olhos dos pais e dos donos de escola como a situação mais normal que possa existir. “Quem quiser passar no vestibular bem, tem que estudar mais que os outros”. E não é “mais” de qualidade, de estudar melhor, é “mais” de quantidade. 40 aulas por semana? Isso é um disparate! Por que os meninos noutras bem sucedidas escolas do país têm no máximo 30 aulas por semana e passam tão bem no vestibular como nossos meninos? O problema é só o gargalo do vestibular? Garanto que não. Esse assunto rende um outro artigo.

Eu quero, então, propor que não enxerguemos mais os outros como concorrentes, mas nós mesmos, as provas que fazemos, o mundo injusto... eles são nossos concorrentes! Pessoas não concorrem, pessoas dignas correm. E juntas. Proponho também que não vejamos aquele cara da nossa área, do nosso curso, como alguém que vai tomar nossa vaga; no entanto alguém que dividirá um espaço conosco num futuro próximo.

Meu texto é utópico, sei disso desde o título. Sei disso desde o primeiro insight que tive sobre o tema para escrevê-lo. E quem foi que disse que não há espaço para a utopia no mundo atual? Quem determinou a regra de que não podemos mais visar o impossível, o inalcançável, o inatingível, o que faz da gente mais do que meros ratos de laboratório correndo em suas esteiras circulares e gerando energia para quem os faz de cobaias? Como estudantes, como educadores, como pais nós podemos orientar humanos a serem humanos não-hiperconcorrentes, mas tão somente humanos em contato direto com a incerteza que faz a gente ser melhor do que podíamos ser um dia. Porque só a certeza não garante nosso crescimento. Que tal pensarmos no hipercompartilhamento?