domingo, 9 de maio de 2010

contodenovo

Possessiva mimética


  Eu não posso me queixar de sua devoção por mim. Ela simplesmente abandonou a vida pra me fazer de tudo. Eu me pergunto todos os minutos do dia por quê. Depois de ter abdicado de sua própria vida com o sólido argumento de que nada mais no mundo fazia sentido, apenas meu ser, meu bem-estar e meu prazer, ela fazia tudo pra mim. Naquele dia mesmo, me preparou um café da manhã espetacular, cujo outro igual só encontrei uma vez num hotel cinco estrelas onde fiquei hospedado. Ainda ministrava cursos naquela época.
 Inclusive foi numa palestra que eu a encontrei. Durante um seminário meu sobre Possessividade Múltipla Imaterial – minha tese de doutorado – dei um exemplo aleatório e deparei-me com seus olhos, de certo jeito, familiares. Até cheguei a pensar que fosse uma colega de faculdade comprovando meu brilhantismo acadêmico, agora fora das cercanias da universidade, me admirando como homem despojado e de voz boa, potente, semi-grave ou mesmo me invejando. Seja lá o que ela estivesse fazendo, no final da palestra, durante o coffe-break, ela se aproximou e me disse que me conhecia de algum lugar. Nem mesmo me elogiou ou cumprimentou. Antes mesmo de eu pensar na cantada inócua clássica que é essa pergunta de aproximação, eu concordei com ela, por ter tido a mesma impressão. Depois dos beijos quentes de duas horas depois, ficou comprovado que não nos conhecíamos de lugar nenhum, que simplesmente éramos um do outro. Ainda naquela noite dormimos juntos e eu tive certeza, como nunca na minha vida, de que ela era uma mulher muito mais que simpática. Não é bela, como se vê na televisão as modelos, mas é um tipo que os homens se interessam, olham e muitas vezes testam. Pra falar a verdade, ela é do tipo que os homens chegam com facilidade porque imaginam pelo seu físico e olhar de entrega que ela não é das mais difíceis de ganhar. Enganam-se. Ou não.
  Nos casamos há dois anos. Tivemos o melhor casamento de que eu ouvi falar. Nem histórias de fadas contam com tanta imaginação as coisas que já vivemos juntos. O nosso casamento se deu como na forma do nosso conhecimento, rápido e apaixonado. Foi um casamento de namoro curto. Era cada palavra, cada suspiro, cada besteira dita, cada fio de cabelo e pinta no corpo o mais perfeito sinal de que éramos únicos e fabricados um pro outro. Não me esqueço do olhar durante a palestra. Eu que nunca vi os olhos de ninguém. Eu que nunca havia comido ninguém nesses cursos. Eu que sempre soube que minha figura representava algo a mais para algumas mulheres, afinal, a fala é poder, o discurso é atraente e os trajes e a barba bem feita e a entonação e as brincadeiras também. Tudo isso é muito sedutor e eu sempre soube disso. Quanto mais mulheres chegavam até mim propondo algum tipo de loucura, mais eu me desvencilhei e, naquele momento, comprovava que estava sendo eficiente o meu propósito de imagem. Também quando homens vinham ter comigo, certamente era pelo mesmo motivo, a sedução que quem discursa revela. O meu assunto tratado sempre foi muito interessante, mas era um produto que eu vendia e sempre pesei pelas mulheres e homens que vinham até mim depois do curso o quanto eu estava sendo eficiente com ele. No dia em que a vi, vendi como sempre o meu produto. Inconscientemente, porém, eu já a desejei desde o momento em que seus olhos pretos perfuraram a redoma que me protege dos desarmes. Um homem veio. Falou o trivial. Duas mulheres vieram. A primeira também foi banal, falou um básico. A outra era ela. E por mais estranha que fosse aquela aproximação (as pessoas sempre vinham falar do que falei), eu cedi de imediato, como que enfeitiçado.
  Gosto de recordar dos momentos subsequentes. Foi tudo tão rápido. Eu comentei com ela o quanto parecia que os segundos demoravam a passar, parece mesmo que estávamos aproveitando tudo e que nosso casamento demorou séculos pra acontecer. E não, foram duas semanas apenas.
  Eu não podia prever o que viria a acontecer. Algo que se chama “estacionamento” pode se aplicar à vida das pessoas. Pessoas que estacionam. E quando falo delas não me refiro imediatamente às que nada fazem, só às que fazem para ficar paradas. Ao nosso lado. Minha esposa tornou-se, a cada dia, uma espécie de escrava voluntária. Parece que fui achando-a muito esquisita, meu desejo diminuía e cada dia mais seus seios pareciam murchar de tristeza. Logo eles, aqueles seios que tanto beijei, me resfoleguei, tanto me aconcheguei a eles, hoje pareciam duas maçãs enrugadas. E não que estivessem velhos, nem mesmo ela. Todos os dias alguém vinha me dizer da beleza da minha esposa, da minha mulher. Beleza que eu não via mais, ela era um tipo comum e de comum a feio e de feio a insuportável. Essa escrava que me alimentava, me lavava todas as roupas, me colocava as roupas no corpo, dessa mulher que ainda resta algum bom sentimento meu por ela, eu não a possuo mais. Ela mesma é que me possui, do jeito dela, desse jeito estranho e incomum que não me permite conhecer outras pessoas, porque sinto pena daquela coitada que vai custar a morrer. O escravo possuindo seu dono, quanta ironia.
  Algumas vezes tirar-lhe a vida passou pela minha cabeça como um fato, como algo que logo deveria ser feito. Nunca tive hombridade, coragem e lealdade a meus princípios o suficiente para executar minha vontade. Parece que ela tinha o corpo fechado. Estive duas vezes marcando encontro com assassinos profissionais que deveriam me livrar desse entojo, mas não concretizei nada, reclamei do preço como desculpa e nada fiz.
Preço nunca foi empecilho pra mim. Dinheiro eu rasgo com o dente. E ela nunca me pediu nada... eu é que tenho de oferecer coisas a ela que, humildemente, aceita com os olhos baixos e tristes, como se não merecesse. Nas festas em que devo estar acompanhado, sempre parte de mim a atitude de comprar um vestido novo, um sapato, uma bolsa... ela nunca toma essa atitude. Vejo todos os meus amigos me tecendo loas pela magnífica esposa que tenho, que todos eles queriam ter uma mulher como essa, já que estão casados com umas megeras que só os exploram e se caricaturizam com tinturas, plásticas, produtos ácidos na cara, enquanto minha “bela” esposa continua como um figo, linda, morena, humilde. Comparados aos olhos dos outros os nossos próprios filtros dos olhos ficam alterados.
  Achei por muito tempo que meus amigos a desejavam. Esse risco eu não corria, ela era minha demais pra ficar com algum de meus amigos. Ela se doava pra mim demais, era impossível que alguém rompesse aquela incorruptibilidade pela causa escolhida e defendida por ela: eu. Nunca pensei que tivesse algum dia esse poder todo, essa semelhança com um deus pra alguém. Nunca pensei, do alto da minha arrogância, que me tornaria um semideus. Nas minhas palestras eu achava que era um profissional competente, do qual todos gostavam de ir ver, de quem a maioria se enchia de motivação e perguntas a ser respondidas com o meu livro. Não muito mais do que isso, nunca achei que pudesse causar uma doença a alguém.
  Temo que minha mulher não tenha volta. Temo por sua vida. Temo que se houver uma separação, além de ter que ser à força, ela não possa sobreviver. Parece que o vínculo estabelecido por ela se transformou em elo, e elo, ainda que quebrado, mesmo que depois consertado, nunca mais é a mesma coisa, além de não ser mais confiável ainda possui um calo em si, um calo visivelmente defeituoso.
*
  Como ao abrir a caixa de Pandora, vejo no fundo uma esperança: a de me redimir perante a mim mesmo ou ao de dar cabo, também eu mesmo, nessa rocha que se calcificou à minha perna e que, a cada dia, como sedimentação, aos poucos se apodera de mim inteiro. Como fui deixar as coisas chegarem até aqui? Qual meu defeito não pude perceber a tempo para evitar que essa coisa se apoderasse do meu corpo como um espírito se apodera de uma matéria viva?
  Tomei uma decisão, ela precisa de tratamento de choque. Preciso fazer com que ela se anule, definitivamente. E só há um jeito de atingi-la. Atingindo-me. Vou cortar meu braço com um facão. É isso, aqui no antebraço, no meio, vários golpes até rachar o osso e partir a pele, os tendões, os músculos, as veias, as artérias. Depois, quando ela chegar aos meus gritos, estará terrificada com a cena na cozinha. Eu, ajoelhado, de calça preta de linho, sapato preto italiano, camisa branca arregaçada até os cotovelos, a gravata vermelha de listras jogada para trás do pescoço, o facão no chão ao lado do meu corpo, meu antebraço destroçado na mão direita, erguido como um troféu de uma maratona, todo o sangue empoçando a mim e o meu redor e minha cara contorcida pela dor, pelo prazer da vitória, pelo desgaste da luta, o olhar voltado para ela em regozijo e pena e o desmaio depois da cena.
  Agora estou no hospital. Ela deve ter tomado as providências. Logo vai vir aqui e me encher de perguntas sofridas, para eu explicar o que aconteceu, por que fiz isso ou se foi alguém. Vou dizer: foi você. Vou te denunciar à polícia, vou dizer. Daqui a pouco aparecem enfermeiras para aplicarem remédios no soro que espeta pela agulha o meu braço bom. Medicamentos para aliviar a dor, diz a enfermeira. Deixa a dor, eu digo, ela comprova que eu tenho controle sobre minha vida. Um homem de branco se aproxima. A cirurgia foi um sucesso e conseguimos fechar bem o ferimento. Alguns procedimentos de cirurgia plástica reparadora, talvez algum enxerto para segurar melhor a prótese futura serão necessários daqui a algum tempo, disse o cirurgião alegremente, mas sem tirar os olhos do prontuário. Aliás, as duas cirurgias foram um sucesso, ele emendou. Eu não ia dizer nada, mas fiquei curioso sobre que outra cirurgia eu teria feito. Sua não, da sua esposa, disse ele. O corte no braço dela fora ainda pior do que o do senhor, ela estava tomada de adrenalina então cortou-o com mais rapidez, estraçalhando-o com mais força, e não desmaiou, ligou para a emergência falando alto, mas sem chorar. Eu recomendei o psiquiatra para o senhor e para ela, o dr. Mourão deve chegar daqui a pouco para fazer uma avaliação com o senhor, tudo bem? depois com ela. A gente tem que cuidar da cabeça também, não é? perguntou o médico num tom infantil, analisando o curativo e sussurrando para a enfermeira sobre o esparadrapo mal pregado. Eu não podia acreditar no que estava acontecendo. Quer dizer então que minha mulher havia também ela cortado o próprio braço?
- Oi amor, disse minha mulher meiga quando fui levado à enfermaria para ficar ao seu lado. O mesmo braço, o curativo no mesmo lugar.
  Quantas partes de mim terei de arrancar para arrancá-la de uma vez de mim?