sexta-feira, 15 de junho de 2012

filosofagens e vagabundamentos


A preguiça não é um pecado. Não são os homens a cometê-la; é ela a acometê-los. A inveja não é um pecado; é a meta ao quadrado. Como se chama o que é mais que pecado, duplamente qualificado? Não é a ira senão a manifestação sincera dos maus humores? Não é engoli-los a seco o verdadeiro pecado? A avareza não é pecado; “é a mãe da economia”, diria o diabo do Machado. A luxúria não é pecado; pecado é deixar as maçãs apodrecerem sem ter delas se deliciado; aliás, os melões, as melancias, as bananas, as uvas, as peras, os mamões, as mangas e até os estranhos kiwis também não chupados. Cobiça é um querer e a reza é de que ele é poder. E se reza, então é verdade e esta é boa; portanto não é pecado. E, finalmente, gula não é pecado; senão a realização de um desejo de se manter bem nutrido sempre. Se outras pessoas passam fome, é porque se abnegaram do direito ao que se convencionou chamar pecado e que aqui o chamamos benefício. Quem não come para evitar a gula compadece-se da inanição, que é doença e, portanto, deveria ser chamada de verdadeiro pecado.
Pecado é não ficar pelado.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

paradoxo da publicidade

Tem um sentimento estranho que me consome: o paradoxo da publicidade. Explico: sou fascinado pela ideia de que, com uma boa imagem, um discurso bem ajambrado, uma estratégia de promoção bem feita, as pessoas comprem uma ideia. Não falo de comprar somente com dinheiro; aliás, falo principalmente da ideologia que existe por trás de tudo que é vendido. Uma marca de roupa ou uma instituição de combate à violência contra os animais - tudo é ideia. Por outro lado, minha fascinação é interrompida pelo nível de alienação que a publicidade pode perpetrar, além da poluição visual que consome nossas cidades (São Paulo é um exemplo marginal. Foi "limpa" nos últimos anos da excessiva poluição visual; os outdoors foram banidos e as fachadas das lojas têm dimensionamento definido pela prefeitura).
Outro dia, consumido por essa contradição de gostar/detestar publicidade nas ruas, principalmente em época quando ela brilha em led ou é feita de um plotter extremamente chamativo, parado num sinaleiro, olhei pra cima e vi um banner com uma propaganda de uma loja de roupa feminina. Não lembro o nome da loja; mas talvez se lembrasse não o poria aqui, não estou recebendo pra fazer propaganda pra ninguém. A imagem de uma mulher palha, magra, com um coque no cabelo e uma roupa que almeja ser bonita, sem nada de muito diferente, vinha acompanhada de um slogan forte, marcante, agressivo: "Desobedeça, transgrida, reinvente - coleção outono/inverno". Reli. Reli de novo. Depois ri muito, ri alto, ri de modo desconsertante. Como é? A dica da loja é para que suas consumidoras desobedeçam, transgridam,  reinventem... e consumam o mesmo tipo de produto que todo dia é consumido por centenas de milhares de mulheres? Será que o escritório que bolou esse marketing tem noção desse paradoxo? Ou será que construiu esse discurso sabendo que suas consumidoras não se dariam conta dele? Como é que uma mulher pode transgredir seguindo uma tendência "outono/inverno"? Desobedecer comprando? Reinventar repetindo padrões? Talvez adquirindo a coleção "primavera/verão", né? Aliás, quem sabe esse banner não influencia realmente as pessoas a refletirem sobre o significado dessas palavras? 
A publicidade tem banalizado as palavras tanto quanto os políticos têm reescrito conceitos de ética e moral ou os líderes religiosos se apropriado do discurso do demônio para convencer seus fiéis a lhes pagarem cifras exorbitantes de seus mirrados salários. É bisonho, mas é real. Quando leio numa revista "a revolução dos cosméticos", só consigo imaginar um creme hidratante com um coquetel molotov na mão e um esfoliante com uma máscara preta na cara. Revolução era palavra do "index" da ditadura brasileira. Hoje está na publicidade ajudando a consolidar o perfil de consumista que todos nós adquirimos com essa nova maré boa de economia em que estamos nos enfurnando. Estamos adaptando o american way of life ao jeitinho brasileiro de gastar em suaves prestações (ou mais parecido com a gente, "de levar vantagem em tudo", como na lei de Gérson).
"A propaganda é a alma do negócio". Essa máxima nunca foi tão verdadeira: os imperativos dos slogans e das imagens pasteurizadas têm transformado essa alma em arma. Os negócios apontam suas armas para nós. O desejo de consumir nos consome, autofágico. Estamos vendidos aos discursos prontos e bastante predispostos à reinvenção do material do qual nós temos sido feitos - plástico. 

segunda-feira, 9 de abril de 2012

meio tenso,
senso sonso,
torço o meio
do pescoço,
absconso.

seio denso
texto torto,
mostro mênstruo
no monstro,
alonso.

é-o: s,x

segunda-feira, 12 de março de 2012

Verdi de primeira viagem




Ouviu dizer que música clássica ajuda a relaxar enquanto se dirige no trânsito caótico da cidade. A sogra dissera isso no almoço de domingo. E se a sogra dissera, só podia ser verdade. Então foi até uma loja para comprar um CD. Pediu ao vendedor que lhe recomendasse algo bom, porque ele não entendia de música clássica, e sua sogra dissera que era bom pra ouvir no trânsito, que deixava as pessoas relaxadas, porque a música é calma e o trânsito, o trânsito não, esse era bem barulhento, perturbador, então ele pensou...
- Está certo senhor, eu entendi – arrematou o vendedor demonstrando um pouco de impaciência, como se já tivesse ouvido aquela história algumas vezes. Ele realmente era daqueles sujeitos calados, mas que contavam as mesmas coisas quando abriam a boca. Mesmo quando abriam a primeira vez pra uma história.
- O que o senhor prefere? Temos aqui – mostrando algumas coletâneas com capas de natureza morta – Strauss, Vivaldi, Chopin, Wagner, Beethoven, Verdi, Handel, Mozart, Tchaikovsky, Enya...
- Enya é música clássica? – interrompeu curiosamente o neófito nesse ramo.
- Não, mas para o que o senhor quer, é a mesma coisa.
- Enya é homem ou mulher?
- É mulher.
- Então não deve prestar. Me vê o verde aí.
- Verdi, o senhor quer dizer...
- Verde, Verdi, Vermelho, desde que seja bom, tanto faz. Se eu ficar calmo, volto pra comprar mais.
- É ópera, senhor. Tudo bem?
- É daquele povo que canta e a gente não entende nada?
- Isso é Sepultura, senhor (o vendedor ria por dentro de sua sacada genial).
- Hein?
- Mais algum?
Levou Giuseppe Verdi. Assim que entrou no seu carro mil, tirou o CD de modão e pôs-se a escutar La Traviata. No princípio teve uma sensação semelhante à de quando comeu kiwi na casa da sogra, no Natal, pela primeira vez. Era gostoso, mas era estranho.
Aos poucos se acostumou e começou a sentir que a música começava a falar-lhe ao coração. Aumentou o volume; aumentou sua excitação. Depois de meia hora de trânsito, sentia-se superior aos demais. Naquele calor suarento que as catorze horas fazem, sentia uma leve brisa entrar pelo vidro aberto do carro. Os outros veículos do engarrafamento suavam. Ele sentia como se seu rosto sorrisse, mesmo sem olhar nos retrovisores para confirmar isso.
Uma moto vermelha, com dois homens magros, parou ao lado do carro dele e o carona sacou um revólver enquanto o da frente acelerava como quem ia sair antes do assalto ser concluído.
- Passa a carteira agora, viado!! Passa logo! Eu te mato, anda! A carteira, caralho!!
Ele ficou meio pasmo com o insólito e esticou o braço lentamente para baixo do console central do carro para pegar a carteira, como pedia o bandido. Enquanto entregava a carteira para o bandido, puxou com a outra mão o braço com revólver do bandido. O outro rapaz saiu em disparada, deixando o carona caindo para trás. O homem então, segurando firmemente o braço do meliante, tirou-lhe a arma da mão inclinando-a para trás e fechou rapidamente o vidro do carro. O sinal abriu logo em seguida, ele engatou a primeira e saiu como sairia se não tivesse um bandido pendurado em seu carro. Ouvia Verdi, arrastava um bandido pelo braço em seu carro a trinta e poucos quilômetros por hora e ia imprimindo velocidade, como faria normalmente. O bandido gritava e dava cabeçadas de capacete no vidro, até que este quebrou-se. As mãos do homem mantiveram o jovem bem preso com o braço torcido pra baixo depois disso. Os calçados se esfacelavam no asfalto, o sangue do braço misturava-se ao suor, La Traviata falava-lhe aos seus sentidos mais humanos. Alguns carros ao redor estavam parados, uns protestavam pela crueldade, outros buzinavam, anuentes e se sentindo vingados, andavam lado a lado com a cena.
Alguns quilômetros depois, quando o bandido não mais reagia, a polícia o parou. Mandou-o encostar o carro. Só soltou o bandido porque viu suas pálpebras fechadas e não ouviu mais sua voz, não porque tinha uma 765 apontada pelos policiais para sua cabeça.
Desceu do carro, calmo, resignado, dileto. Os policiais falavam alto, mas a música de Verdi falava-lhe mais. Os restos mortais do bandido jaziam ao lado do veículo. Com as mãos levantadas, olhando para baixo, passou por cima do corpo como se fosse um entulho.
Perguntado pela sogra, na cadeia, como fizera obra tão bruta, ele dissera que não sabia.
- Mas isso não deixou você importunado, matar um homem, Constâncio?
- Sabe, d. Norma, a senhora tinha razão, como sempre: essa tal de música clássica relaxa a gente. A senhora conhece esse Verdi?