domingo, 19 de setembro de 2010

meu zeus zu céu

Saí da depressão pós-Lobo da estepe e decido ler Zeus - fragrância de crisântemos, do escritor goiano Rafael Ximenes, por sugestão de um aluno de cursinho que não compreendeu o narrador do final. Vamos lá, leitura rápida. Romance policial. Letras grandes. Espaço 1,5. Revisão do autor. Opa, eu disse "revisão do autor"? Caralho, isso me preocupa, porque não podemos revisar nossos textos próximo de publicá-los. Faço isso no blog porque sou irresponsável, mas o certo seria outro ler/corrigir. E tem lá no texto alguns vacilos linguísticos. Notar isso é coisa de gente mesquinha, que lê todas as letras da palavra, como eu. Nada comprometedor ao texto, nesse caso.
Já de partida Bariani Ortencio, reconhecido autor goiano, assina o prefácio comparando o estudante de medicina Rafael a um dos cânones da literatura goiana - quiçá o maior - Hugo de Carvalho Ramos. Mano, eu diria pro Bariani: "a única semelhança é a idade dos caras ao publicar suas obras". Fora isso...
Li o livro ontem mesmo, durante a tarde (com duas pausas pra sono num calor de caldo de mandioca servido às três e meia). Sinceramente, não gostei. Não sei se é a ressaca do Lobo (maldito livro que me tira o sono, ainda) (bendito livro que me faz dormir me sentindo mais inteligente) ou se o livro do rapaz é ruim, ou ainda se eu não gosto de literatura policial. Não é possível, eu adoro seriados como Law and Order (todos os 4), CSI, Medical detectives, 24 horas, Cold Case, Todo mundo odei (ops, esse não é policial)... enfim, parece que eu gosto do gênero. Rá, mas não tenho hábito de ler esses textos, apenas a ver as séries televisivas. Li apenas um conto da Agatha Christie, uns dois do Conan Doyle, dois romances do Dan Brown (mas esses eu achei ruins de doer também). Vai ver que é isso.
Os personagens são rasos, a trama é scooby-doolesca, e o autor precisa de um narrador onisciente em duas ou três partes do livro pra dizer o que o narrador personagem "não consegue", e um narrador no final que não parece muito com os outros dois, exceto o fato de ser onisciente como o que aparece em alguns capítulos. É um narrador pretensioso, eu diria.
Já ouvi falar que o gênero é rápido, que a leitura é fluida e que a gente fica com vontade de ler logo. Eu li em um dia essas cento e poucas páginas, muito mais porque não teria tempo hoje e quero começar logo um Saramago, do que necessariamente porque a história me prendeu. 
Um jornalista, um serial killer que mata retomando a mitologia grega, egípcia etc, na cena do crime perfume de crisântemos, dois amores mal ajambrados do jornalista e um detetive "culto" que dá definições de Wikipedia pro jornalista. É isso, basicamente. Parece uma boa redação de aluno meu, não parece um romance.
Rafael Ximenes ainda publicou outro livro com temas similares. Posso estar sendo exigente demais, até porque estou numa gana ultimamente por literatura reconhecida que nos pode criar preconceitos, porém defendo que todos publiquem o que quiserem/puderem publicar. Alguém sempre vai acabar lendo. Não queria, só, que fosse eu.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

desova de um corpo


Entendo perfeitamente por que Clarice Lispector impressionou-se tanto com O lobo da estepe, de Hermann Hesse. A obra foge à tradicional narração descompensada e fluida que permeia as páginas dos livros de hoje. O texto é dividido em duas partes - a saber: uma nota introdutória do "editor" (personagem que convivera com o Lobo-Harry na casa de sua tia, usada também como pensão, onde o personagem central vivera dez meses) e o relato poético-bêbado-fantástico-alucinado do lobo da estepe -, que são plurinarrativas, sobretudo a segunda parte. O narrador-personagem relata sua vida intempestiva entre o conservador-rebelde Harry Haller e o tímido-agressivo Lobo da estepe. Os extremos discorridos na história mágica não ficam no maniqueísmo. Bem ao contrário, a vida que conduz Harry ao chegar a esta casa é completamente diferente da que levava antes, segundo seu relato. É na dialética, nas várias e incontáveis almas, pontas do leque que ele abre e fecha, que se constrói a intrincada vida do homem cinquentenário, muito similar ao autor Hermann Hesse em vários pontos, rezam por aí. Aliás, o autor está em vários dos personagens desse importante romance da literatura alemã.
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Eu não estou conseguindo dizer, não estou conseguindo analisar, criticar, fazer meu leitor compreender pelo que passei nesta leitura. Por isso eu não vou chamar esta minha admissão de incompetência, de resenha. E é estranho, mas minha incapacidade de fazer uma sinopse da obra (não consigo, não quero, apesar de sabê-la, a história toda) não me deixa mal. Eu, que gosto de escrever sobre o que leio, que adoro falar bem ou mal do que meus olhos se acostumaram a ler por uns dias, assumo que não posso dizer, porque não quero; porque não quero dividir? porque não tenho palavras? porque não consigo traduzir? Eu preciso inserir um trecho do livro agora.
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No grande espelho da parede achava-se Harry diante de mim. Seu aspecto não era melhor do que na noite em que, após a visita ao professor, entrou no baile do Águia Negra. Mas aquilo estava muito longe, anos e séculos afastado; Harry havia envelhecido, havia aprendido a dançar, havia visitado o teatro mágico, havia ouvido Mozart rir; já não sentia angústia diante do baile, diante das mulheres, diante dos punhais. Mesmo aqueles medianamente dotados, com o passar de uma centena de anos, atingiriam a maturidade. Examinei Harry demoradamente no espelho: reconhecia-o ainda, continuava ainda a parecer-se um tanto com o Harry de há cinquenta anos, que num domingo de março havia encontrado Rosa nos penedos e havia tirado diante dela o boné de escolar. E no entanto havia envelhecido uma centena de anos após isso, havia cultivado a música e a filosofia, lutara até não poder mais, bebera vinho no Elmo de Aço e discutira sobre Krishna com homens de honesto saber. Amara Erika e Maria, fora amigo de Hermínia, disparara contra automóveis e dormira com a suave chinesinha; encontrara Goethe e Mozart e fizera alguns buracos na rede do tempo e da realidade ilusória, na qual caíra prisioneiro. E, embora tivesse perdido duas figurinhas de xadrez, ainda tinha um magnífico punhal no bolso. Adiante, velho Harry, velho e cansado companheiro. (p. 225)
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É um resumo de uma parte da história de Harry, esse velho que só apanhava e era incapaz de aprender o novo sozinho e como uma criança, como um adolescente insensato (pleonasmo) recebe as ordens da moça Hermínia ( sim, é também uma sombra do autor) e promete seguir e obedecer tudo o que ela disser.
Eu estou trans(f-t)or(m-n)ado. É isso, nunca escrevi nada tão incoerente. É indizível, mas me dá raiva. Eu sou menor, muito menor que a obra. Preciso voltar a lê-la daqui a vinte anos, o Hermann disse isso na sua nota final. Eu não rejeito o Lobo, somente porque ele não passou pelos meus filtros que me protegem de sofrer, porém atracou-se violentamente ao meu miocárdio, passou direto, como o fez também o Sidarta, mas de modo infinitamente mais atabalhoado.
Não sei se meu leitor me acompanhou até aqui, ou mesmo se quer que eu ainda fale desse livro. Se não, nem sei se publico aqui no Tessitura uma tentativa de escrever essa resenha. Se eu não conseguir, prometo encontrar uma que dê conta, minimamente, da magnitude do texto.
Sempre ele, me engolindo...

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

a tal dissertação (parte I)

Leitores, eu sinto tanta falta de escrever quanto vocês de lerem as coisas que eu escrevo, tenham certeza. Não escrevo mais por puro preciosismo. Eu deveria tratar isso aqui com mais displicência, publicar tudo o que eu quisesse. Só que eu não dou conta. To tentando mudar, sério. Esse texto que segue, eu prometi que só ia publicar depois de uma amiga me dar um retorno sobre as contradições que devem existir nele e eu não vi. Como ela ainda não me respondeu e dois incríveis leitores (Bruna, Renan, não sei como vcs têm saco pra isso aqui, kkkk) me cobraram, decidi publicar logo esse pseudoensaio sobre dissertação. Sabe, tenho refletido muito sobre o gênero e começo a pensar se não é uma boa fazermos um bom uso dele. Enfim, tirem suas conclusões (ou encham-se de dúvidas de uma vez!)
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Aprendemos há muito tempo na escola a produzir um texto chamado por nossos professores de dissertação. Esse texto, à maneira clássica que sempre fora ensinado, previa algumas regras específicas que jamais poderiam ser violadas pelos alunos-escribas. Durante décadas a escola impôs esse tipo de produção como única alternativa durante o ensino médio. A dissertação também era a vedete dos vestibulares Brasil afora até meados da década de 1990. Mas essa história vem mudando e, com ela, o texto dissertativo.
Mesmo hoje, quando se procura por “dissertação” na internet ou mesmo nos mais atualizados livros de redação, é comum encontrarmos uma série de regrinhas que estipulam como deve ser esse texto. “O texto é impessoal e objetivo”; “não deve ser redigido na 1ª pessoa”; “é preciso apresentar uma tese na introdução”; “na conclusão o autor pode apresentar seu ponto de vista e/ou propor soluções para o problema sugerido pelo tema”, e por aí vai.
Acontece que talvez estejamos atravessando o principal momento da produção textual espontânea da história. Os meios de comunicação, os “torpedos” dos celulares e os gêneros surgidos com o advento da internet são algumas dessas molas propulsoras. Vejamos o que apareceu de novo nessas últimas duas décadas: surgimento do SMS (“torpedo”) com limitação de caracteres – e consequentemente aquilo que chamaríamos “internetês”, a língua das famosas e mal afamadas abreviações –; dos bate-papos – também conhecidos como chats e extensivos aos programas de mensagens instantâneas, como o MSN –; o blog – que alguns consideraram o substituto do gênero diário pessoal, apesar de que hoje isso é completamente discutível –; o scrap do Orkut – um recado pessoal público –; o depoimento do Orkut – gênero agora produzido por qualquer mortal e publicado na internet –; o fórum de discussão – enquetes que se popularizaram e promoveram grandes discussões na net –; mais recentemente o tweet, do site www.twitter.com – conhecido como microblog, o texto é produzido em no máximo 140 caracteres – dentre vários outros que possivelmente margeiam os textos “oficiais” da imprensa, da escola e da rua.
Essa profusão de gêneros influencia mutuamente muitos gêneros cotidianos, e a dissertação – tomada aqui por nós também como um gênero – também recebe a influência dessas produções. No entanto, a dissertação clássica (entendida por muitos ainda hoje como nos moldes aristotélicos) parece ter sofrido influência também do texto produzido no mestrado. A dissertação produzida na pós-graduação começa a ser entendida pelas bancas como um texto de forma não mais tão rígida como em anos anteriores e há vários casos de mestrandos que produziram seus textos em 1ª pessoa e ensaiando ensaios. Essa possível “quebra” da rigidez estrutural e linguística do texto joga sementes ao texto produzido no ensino médio, e tem-se hoje a pleonástica “dissertação argumentativa”. Pleonástica porque supõe-se da dissertação da atualidade a fusão natural dos tipos argumentação e exposição, além dos possíveis outros tipos (narração, injunção e descrição) quando usados como elementos argumentativos.
A dissertação argumentativa, rezam os manuais, é um texto dinâmico do ponto de vista estrutural, porque “permite” que seu autor não se restrinja mais a emitir sua opinião apenas na conclusão. Já do título ele pode enviesar sua discussão.
Ainda assim, as limitações que o professor de língua portuguesa e redação impõe aos alunos quanto à forma (estruturas paragrafal e gramatical), mantêm-nos sob o jugo da tríade “introdução-desenvolvimento-conclusão”, que funcionam como esqueleto do discurso argumentativo de modo geral, e dos recatos da tese introdutória. Não enxergam realmente que as estruturas praticamente ruíram e que os clichês sobre como fazer estão fora de contexto, além de limitar o ímpeto discursivo de que todos, pelos menos um pouco, possuímos.
Nossa proposta para o gênero dissertação escolar pressupõe o risco de “quebrar a forma” em busca de um discurso que não seja estruturalmente racionalizado, mas antes intuitiva e naturalmente constituído a partir desta situação discursiva: “escrever não para o professor ou corretor, mas para o leitor comum do jornal, da revista, da tevê e da internet”. A proposição do tema engloba o aluno enquanto “receptor de conteúdo de várias frentes” e enquanto “sujeito-pensante que precisa expressar suas ideias para o mundo”.
Esbarramos, contudo, na obrigatoriedade da entrega da produção em prazos escolares e na “correção” do texto sob uma ótica ainda gramaticista e horizontal. Ou seja, o conceito recebido pelo aluno de zero a dez e os critérios básicos de avaliação do texto (adequação a: tema, coletânea, gênero e língua. Além da análise da dicotomia coerência/coesão) são parte da rotina da sala de aula que precisam urgentemente de reescrita/reinterpretação/revisão. O texto dissertativo precisa (mais até que outros gêneros) ser visto como espaço de invenção e discussão do sujeito aluno com o mundo. Sua parcela de contribuição para os debates da polêmica atualidade à filosofia mais abstrata precisa ser enxergada mais do que a “tarefa” ou “dever”. A redação precisa ter mais visibilidade, o professor tem que incentivar a produção do jornal da escola, enviar o melhor texto da sala para a seção de cartas do jornal (que hoje estão longe de ser entendidas como gênero interlocutório explícito), publicá-la no mural da instituição, inseri-lo como bom exemplo no material repassado ao aluno para que outros leiam. O texto precisa ter uma função maior que a da mera avaliação.
Sugerimos aos alunos que a máxima “só escreve bem aquele que lê bastante” é uma meia verdade e que o certo seria avaliar a qualidade da leitura acima da quantidade. Também os incentivamos a copiar recursos que deram certo em textos publicados no cotidiano e os inserir com as próprias palavras em suas dissertações. Encorajamo-los à plurivocidade, ao reconhecimento dos vários discursos e vozes do mundo e o aproveitamento desses entrecruzamentos para a criação de um discurso “novo”, mesmo sabendo que, como disse o poeta Augusto de Campos: “tudo está dito”.
Acontece que nesse mesmo poema, o poeta sugere que “tudo” é uma palavra e que essa palavra tende ao sem-fim: “tudo é infinito”, pois “nada é perfeito” e aí “eis o imprevisto”. É nisto que acreditamos: que o aluno precisa dissertar com liberdade para que seu discurso tenha validade no mundo fora dos muros escolares.

Continua...