sexta-feira, 17 de setembro de 2010

desova de um corpo


Entendo perfeitamente por que Clarice Lispector impressionou-se tanto com O lobo da estepe, de Hermann Hesse. A obra foge à tradicional narração descompensada e fluida que permeia as páginas dos livros de hoje. O texto é dividido em duas partes - a saber: uma nota introdutória do "editor" (personagem que convivera com o Lobo-Harry na casa de sua tia, usada também como pensão, onde o personagem central vivera dez meses) e o relato poético-bêbado-fantástico-alucinado do lobo da estepe -, que são plurinarrativas, sobretudo a segunda parte. O narrador-personagem relata sua vida intempestiva entre o conservador-rebelde Harry Haller e o tímido-agressivo Lobo da estepe. Os extremos discorridos na história mágica não ficam no maniqueísmo. Bem ao contrário, a vida que conduz Harry ao chegar a esta casa é completamente diferente da que levava antes, segundo seu relato. É na dialética, nas várias e incontáveis almas, pontas do leque que ele abre e fecha, que se constrói a intrincada vida do homem cinquentenário, muito similar ao autor Hermann Hesse em vários pontos, rezam por aí. Aliás, o autor está em vários dos personagens desse importante romance da literatura alemã.
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Eu não estou conseguindo dizer, não estou conseguindo analisar, criticar, fazer meu leitor compreender pelo que passei nesta leitura. Por isso eu não vou chamar esta minha admissão de incompetência, de resenha. E é estranho, mas minha incapacidade de fazer uma sinopse da obra (não consigo, não quero, apesar de sabê-la, a história toda) não me deixa mal. Eu, que gosto de escrever sobre o que leio, que adoro falar bem ou mal do que meus olhos se acostumaram a ler por uns dias, assumo que não posso dizer, porque não quero; porque não quero dividir? porque não tenho palavras? porque não consigo traduzir? Eu preciso inserir um trecho do livro agora.
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No grande espelho da parede achava-se Harry diante de mim. Seu aspecto não era melhor do que na noite em que, após a visita ao professor, entrou no baile do Águia Negra. Mas aquilo estava muito longe, anos e séculos afastado; Harry havia envelhecido, havia aprendido a dançar, havia visitado o teatro mágico, havia ouvido Mozart rir; já não sentia angústia diante do baile, diante das mulheres, diante dos punhais. Mesmo aqueles medianamente dotados, com o passar de uma centena de anos, atingiriam a maturidade. Examinei Harry demoradamente no espelho: reconhecia-o ainda, continuava ainda a parecer-se um tanto com o Harry de há cinquenta anos, que num domingo de março havia encontrado Rosa nos penedos e havia tirado diante dela o boné de escolar. E no entanto havia envelhecido uma centena de anos após isso, havia cultivado a música e a filosofia, lutara até não poder mais, bebera vinho no Elmo de Aço e discutira sobre Krishna com homens de honesto saber. Amara Erika e Maria, fora amigo de Hermínia, disparara contra automóveis e dormira com a suave chinesinha; encontrara Goethe e Mozart e fizera alguns buracos na rede do tempo e da realidade ilusória, na qual caíra prisioneiro. E, embora tivesse perdido duas figurinhas de xadrez, ainda tinha um magnífico punhal no bolso. Adiante, velho Harry, velho e cansado companheiro. (p. 225)
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É um resumo de uma parte da história de Harry, esse velho que só apanhava e era incapaz de aprender o novo sozinho e como uma criança, como um adolescente insensato (pleonasmo) recebe as ordens da moça Hermínia ( sim, é também uma sombra do autor) e promete seguir e obedecer tudo o que ela disser.
Eu estou trans(f-t)or(m-n)ado. É isso, nunca escrevi nada tão incoerente. É indizível, mas me dá raiva. Eu sou menor, muito menor que a obra. Preciso voltar a lê-la daqui a vinte anos, o Hermann disse isso na sua nota final. Eu não rejeito o Lobo, somente porque ele não passou pelos meus filtros que me protegem de sofrer, porém atracou-se violentamente ao meu miocárdio, passou direto, como o fez também o Sidarta, mas de modo infinitamente mais atabalhoado.
Não sei se meu leitor me acompanhou até aqui, ou mesmo se quer que eu ainda fale desse livro. Se não, nem sei se publico aqui no Tessitura uma tentativa de escrever essa resenha. Se eu não conseguir, prometo encontrar uma que dê conta, minimamente, da magnitude do texto.
Sempre ele, me engolindo...

Um comentário:

Márcia Dayane disse...

Após ler sua "tentativa de resenha", como você mesmo disse, confesso que despertou minha curiosidade. Beijo!