segunda-feira, 6 de setembro de 2010

a tal dissertação (parte I)

Leitores, eu sinto tanta falta de escrever quanto vocês de lerem as coisas que eu escrevo, tenham certeza. Não escrevo mais por puro preciosismo. Eu deveria tratar isso aqui com mais displicência, publicar tudo o que eu quisesse. Só que eu não dou conta. To tentando mudar, sério. Esse texto que segue, eu prometi que só ia publicar depois de uma amiga me dar um retorno sobre as contradições que devem existir nele e eu não vi. Como ela ainda não me respondeu e dois incríveis leitores (Bruna, Renan, não sei como vcs têm saco pra isso aqui, kkkk) me cobraram, decidi publicar logo esse pseudoensaio sobre dissertação. Sabe, tenho refletido muito sobre o gênero e começo a pensar se não é uma boa fazermos um bom uso dele. Enfim, tirem suas conclusões (ou encham-se de dúvidas de uma vez!)
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Aprendemos há muito tempo na escola a produzir um texto chamado por nossos professores de dissertação. Esse texto, à maneira clássica que sempre fora ensinado, previa algumas regras específicas que jamais poderiam ser violadas pelos alunos-escribas. Durante décadas a escola impôs esse tipo de produção como única alternativa durante o ensino médio. A dissertação também era a vedete dos vestibulares Brasil afora até meados da década de 1990. Mas essa história vem mudando e, com ela, o texto dissertativo.
Mesmo hoje, quando se procura por “dissertação” na internet ou mesmo nos mais atualizados livros de redação, é comum encontrarmos uma série de regrinhas que estipulam como deve ser esse texto. “O texto é impessoal e objetivo”; “não deve ser redigido na 1ª pessoa”; “é preciso apresentar uma tese na introdução”; “na conclusão o autor pode apresentar seu ponto de vista e/ou propor soluções para o problema sugerido pelo tema”, e por aí vai.
Acontece que talvez estejamos atravessando o principal momento da produção textual espontânea da história. Os meios de comunicação, os “torpedos” dos celulares e os gêneros surgidos com o advento da internet são algumas dessas molas propulsoras. Vejamos o que apareceu de novo nessas últimas duas décadas: surgimento do SMS (“torpedo”) com limitação de caracteres – e consequentemente aquilo que chamaríamos “internetês”, a língua das famosas e mal afamadas abreviações –; dos bate-papos – também conhecidos como chats e extensivos aos programas de mensagens instantâneas, como o MSN –; o blog – que alguns consideraram o substituto do gênero diário pessoal, apesar de que hoje isso é completamente discutível –; o scrap do Orkut – um recado pessoal público –; o depoimento do Orkut – gênero agora produzido por qualquer mortal e publicado na internet –; o fórum de discussão – enquetes que se popularizaram e promoveram grandes discussões na net –; mais recentemente o tweet, do site www.twitter.com – conhecido como microblog, o texto é produzido em no máximo 140 caracteres – dentre vários outros que possivelmente margeiam os textos “oficiais” da imprensa, da escola e da rua.
Essa profusão de gêneros influencia mutuamente muitos gêneros cotidianos, e a dissertação – tomada aqui por nós também como um gênero – também recebe a influência dessas produções. No entanto, a dissertação clássica (entendida por muitos ainda hoje como nos moldes aristotélicos) parece ter sofrido influência também do texto produzido no mestrado. A dissertação produzida na pós-graduação começa a ser entendida pelas bancas como um texto de forma não mais tão rígida como em anos anteriores e há vários casos de mestrandos que produziram seus textos em 1ª pessoa e ensaiando ensaios. Essa possível “quebra” da rigidez estrutural e linguística do texto joga sementes ao texto produzido no ensino médio, e tem-se hoje a pleonástica “dissertação argumentativa”. Pleonástica porque supõe-se da dissertação da atualidade a fusão natural dos tipos argumentação e exposição, além dos possíveis outros tipos (narração, injunção e descrição) quando usados como elementos argumentativos.
A dissertação argumentativa, rezam os manuais, é um texto dinâmico do ponto de vista estrutural, porque “permite” que seu autor não se restrinja mais a emitir sua opinião apenas na conclusão. Já do título ele pode enviesar sua discussão.
Ainda assim, as limitações que o professor de língua portuguesa e redação impõe aos alunos quanto à forma (estruturas paragrafal e gramatical), mantêm-nos sob o jugo da tríade “introdução-desenvolvimento-conclusão”, que funcionam como esqueleto do discurso argumentativo de modo geral, e dos recatos da tese introdutória. Não enxergam realmente que as estruturas praticamente ruíram e que os clichês sobre como fazer estão fora de contexto, além de limitar o ímpeto discursivo de que todos, pelos menos um pouco, possuímos.
Nossa proposta para o gênero dissertação escolar pressupõe o risco de “quebrar a forma” em busca de um discurso que não seja estruturalmente racionalizado, mas antes intuitiva e naturalmente constituído a partir desta situação discursiva: “escrever não para o professor ou corretor, mas para o leitor comum do jornal, da revista, da tevê e da internet”. A proposição do tema engloba o aluno enquanto “receptor de conteúdo de várias frentes” e enquanto “sujeito-pensante que precisa expressar suas ideias para o mundo”.
Esbarramos, contudo, na obrigatoriedade da entrega da produção em prazos escolares e na “correção” do texto sob uma ótica ainda gramaticista e horizontal. Ou seja, o conceito recebido pelo aluno de zero a dez e os critérios básicos de avaliação do texto (adequação a: tema, coletânea, gênero e língua. Além da análise da dicotomia coerência/coesão) são parte da rotina da sala de aula que precisam urgentemente de reescrita/reinterpretação/revisão. O texto dissertativo precisa (mais até que outros gêneros) ser visto como espaço de invenção e discussão do sujeito aluno com o mundo. Sua parcela de contribuição para os debates da polêmica atualidade à filosofia mais abstrata precisa ser enxergada mais do que a “tarefa” ou “dever”. A redação precisa ter mais visibilidade, o professor tem que incentivar a produção do jornal da escola, enviar o melhor texto da sala para a seção de cartas do jornal (que hoje estão longe de ser entendidas como gênero interlocutório explícito), publicá-la no mural da instituição, inseri-lo como bom exemplo no material repassado ao aluno para que outros leiam. O texto precisa ter uma função maior que a da mera avaliação.
Sugerimos aos alunos que a máxima “só escreve bem aquele que lê bastante” é uma meia verdade e que o certo seria avaliar a qualidade da leitura acima da quantidade. Também os incentivamos a copiar recursos que deram certo em textos publicados no cotidiano e os inserir com as próprias palavras em suas dissertações. Encorajamo-los à plurivocidade, ao reconhecimento dos vários discursos e vozes do mundo e o aproveitamento desses entrecruzamentos para a criação de um discurso “novo”, mesmo sabendo que, como disse o poeta Augusto de Campos: “tudo está dito”.
Acontece que nesse mesmo poema, o poeta sugere que “tudo” é uma palavra e que essa palavra tende ao sem-fim: “tudo é infinito”, pois “nada é perfeito” e aí “eis o imprevisto”. É nisto que acreditamos: que o aluno precisa dissertar com liberdade para que seu discurso tenha validade no mundo fora dos muros escolares.

Continua...

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