domingo, 31 de outubro de 2010

homem dois

O Homem Duplicado não é, nem de perto, nem de longe a melhor, tampouco pode ser considerada a pior, obra de José Saramago, escritor português que morreu neste mesmo ano em que estamos. Autor de clássicos como Ensaio Sobre a Cegueira, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Jangada de Pedra, entre outros tantos títulos, José Saramago gosta de criar narradores mexericos, que relatam claramente os fatos em longuíssimos parágrafos de várias páginas, poucos pontos e muitas vírgulas, com diálogos intensos e inteligentes marcados apenas pelas maiúsculas e pelos característicos verbos dicendi que indicam a enunciação, ao que alguém poderá perguntar Como é possível entender quem fala o quê, ao passo que o leitor saramaguiano dirá Simples, Como simples, Simples porque cada letra maiúscula indica a fala de um e destoutro, E como entender que se faz perguntas, Perguntas não necessitam ponto, Então o quê, A entonação já lhes basta, E exclamações, Também estas são dispensáveis, O contexto, Sim, sempre o contexto dirá. Também ele, o contexto, dirá para nós nesta obra como é que a epígrafe O Caos É Uma Ordem Por Decifrar, indicado por ser do Livro dos contrários, se resolve na trama pouco convencional, como é característico também na obra de José Saramago, cujos personagens costumam ter nomes curiosos, esquadrinhados por esse narrador que não gosta de fingir subentendidos, já no primeiro parágrafo da maioria de seus livros, repetidos inteiros a cada vez que se faz referência a eles, e neste romance em especial o personagem central se chama Tertuliano Máximo Afonso. Imagine o que é ler esse nome imenso e feio toda vez que o personagem aparece. Este Tertuliano Máximo Afonso é professor de história numa escola secundária, tem um colega professor de Matemática, assim chamado durante toda a trama, uma namorada Maria da Paz, uma mãe Carolina Máximo e um duplicado casado com uma Helena apelidado Daniel Santa-Clara como ator e António Claro na realidade. Há um cachorro também, Tomarctus, o que aliás é outra característica da criação saramaguiana. Tertuliano Máximo Afonso passa por um momento subtil de melancolia, marasmo o qual é notado pelo colega professor de Matemática que lhe indica uma comédia dessas de se ver desinteressado, da qual não se dá muitas gargalhadas, não há muitas acções cómicas, mas ri-se o suficiente para animar os amargores cotidianos. Eis que depois de assisti-lo, Tertuliano Máximo Afonso dorme e acorda no meio da noite como se ouvisse passos, como se houvesse gente a mais em casa onde morava sozinho. Depois de investigada a casa e não se constatar nenhuma presença, observa a fita de Quem Porfia Mata Caça no videocassete e decide rever o filme. A surpreendente matriz da narrativa é que Tertuliano Máximo Afonso encontra no filme um homem igualzinho a si, daí parte em busca de procurá-lo e achá-lo, e o enredo dá voltas arrepiando-se-nos a espinha toda vez que os dois partem para um encontro, seja para medir seus corpos e constatarem a idêntica existência, seja para travarem diálogos cruéis e confusos sobre quem é o duplicado de quem. José Saramago tem algumas manias narrativas que nos arremessam para dentro da teoria literária a qual parece ele próprio ter criado uma para si, como por exemplo narrar longamente fatos curtos e, na mais inesperada de todas as horas da leitura, narrar mil fatos em um curto espaço de linhas, menos da metade de uma lauda da livro. Também é mania pôr o narrador para reflectir sobre o acto narrativo, sobre o que é melhor para o leitor fazer, sobre o que poderá suceder e que não vai, sobre um possível diálogo, sobre filosofia aplicada. Manias que nos ajudam a delinear os motes da obra de José Saramago e entender-lhe a inquietação literária que o fez começar a escrever aos 25 anos de idade, quando publicara seu primeiro romance Terra do Pecado.
Saramago Duplicado


Então, o leitor se vê, no curto capítulo final, duplicando diálogos já antes atravessados, só que agora é como o fado pudesse ser totalmente controlado por Tertuliano Máximo Afonso. Narrativa fantástica intrigante e habilidosa ao desfecho. Recomendada para leitores pacientes e para pacientes leitores.


p.s.: Pus-me a escrever da forma que o fiz para garantir alguma homenagem ao escritor que aprendi a amar.

domingo, 24 de outubro de 2010

chapeuzinho vermelho

     Certa vez, uma garota viciada em crack, conhecida por andar sempre com um boné vermelho do MST, sem que fizesse parte do movimento brasileiro pelo fim do latifúndio, decidiu que era hora de visitar sua avó. Quem sabe ela não conseguisse dar a manta na aposentadoria da velha pra comprar mais umas pedrinhas. 
     Eis que, atravessando o bosque pra ver se encontrava alguns noias companheiros de cachimbo, se depara com um lobo de pelagem preta que rangia os dentes e também lambia os beiços. Uma fera. A garota do boné vermelho, ou chapeuzinho como alguém vai chamá-la algum dia, estancou. O lobo baixou as calças, mostrou a que vinha, ela levantou a saia até mostrar quase a bunda, e quando o bicho ia pra cima dela, percebeu que com as calças arriadas não conseguia correr tão rápido quanto ela com a saia lá em cima. E ela correu, correu, até o lobo perdê-la de vista num entroncamento de árvores muito grandes. 
      Ele continuou na trilha em que ela estava, quem sabe não encontrasse outra gostosinha em condições. Daí que a nossa querida viciada em pedra está detrás de um tronco de árvore com um paralelepípedo na mão. Antes que ele pudesse levantar a mão pra se defender, ela desce o pedregulho na cabeça do lobo, gritando "toma, filha da puta, qué estrupá? então vai se ferrá!". O lobo caiu desfalecido com a língua pra fora da boca e a braguilha da calça ainda aberta. Ela pisou o corpo dele, passando por cima. Revistou seus bolsos, achou três reais e pensou "vou pegar um baú pra chegar mais rápido na casa da minha velha".
     Assim ela fez. No ônibus, todos a olhavam com desdém, medo, nojo. Ela fingia que o dia estava bonito e que a fissura não dominava seu corpo arrebentado. O ônibus deu tanta volta, que ela quase saltou dele pra ir a pé mesmo, tanto ponto e gente nesses horários de pico.
Horas depois, ela chega a casa da avó. Ela gira a maçaneta, a vó não tinha hábito de trancar a porta, e entra sorrateiramente. Dá uma espiada na sala, na cozinha, não vê ninguém. Quando se achega até o quarto, vê uma figura preta sobre sua avó, os dois se encontram no que a gíria dos pedreiros diz "batendo coxas". Enquanto a vó delira de prazer, o lobo - agora está bem evidente que se ela tivesse vindo a pé chegava bem mais rápido, o desgraçado mesmo ela o tendo deixado desacordado conseguiu chegar antes que ela - se esforça pra satisfazer a anciã. Nossa Chapeuzinho se esconde detrás da máquina de costura do quarto e vasculha dentro da bolsa se acha algum níquel. Nada, não há um centavo dentro da bolsa da velha. Quando ela pensa em levantar, o lobo termina o serviço, a vó está com um sorriso de orelha a orelha. O lobo se veste, dá um beijo na testa da mulher, que diz: "o dinheiro está debaixo do forro da geladeira". "Desgraçado", pensa Chapéu, "come minha vó e ainda leva o dinheiro dela!"
     Levanta-se num pulo, a velha dá um grito de vergonha, pois está nua e enrugada, primeiro por estar sem roupa, segundo por estar velha. A neta faz "sshhhh!" com o dedo na boca. O lobo pergunta da cozinha: 
- Que foi, Marineide? 
- Nada, to só abrindo a boca de tédio...
- Tédio? Mas foi tão ruim assim?
- Imagina, eu estava esperando há anos por uma dessas!
- Aquela sua neta precisa de mais bons modos. Ta mexendo com crack e vai saber mais o quê!
- O quê? Crack? - e diz isso olhando firmemente pra neta, que está de pé procurando algo pra acertar o lobo. 
     Ao que ele retorna de súbito ao quarto, depara-se com a menina segurando a televisão 14" da avó, e diz: 
- Vai vender ou jogar na minha cabeça de novo, ô problemática?
     E Chapéu ia mandar a televisão na cara do lobo, quando sua vó dá-lhe uma bicuda na bunda e essa deixa o televisor cair sobre si quando leva as mãos ao cu. "Porra, vó, o cara te estrupa e você é que vem me batê!?" A mulher pede ao lobo pra segurar a garota, a vó vai até a despensa, busca de lá uma corda grossa de sisal e amarra no pé da neta. Depois a leva ao quintal e a amarra num pé de manga. "Vai ficar aí até passar a vontade de fumar essa merda", diz a mulher irresoluta quanto ao tratamento com a neta. 
- Porra, vó, não vai nem um cigarrinho do capeta pra aliviar?
- Negativo. Se quiser fumar uma manga, pode pegar do pé. Neta minha pode até ser puta, mas crackeira queima o filme demais da família. E vai metida na cinta liga ouvir Raul Seixas com o lobo no som da sala.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

com o coração pra fora dos peitos

a árvore da vida - gustav klimt

     Tenho me perguntado: o que é ser rico? Pra maioria, ser rico é ganhar na megassena (juntou, Bechara?) e esbanjar. Pra alguns, é ter dinheiro pra fazer viagens internacionais, ter imóveis e carros de luxo. Pra uns poucos, ser rico é ter o suficiente pra comprar tudo o que se quer, à vista. Pra uma minoria, ser rico não tem ligação direta com dinheiro. Eu to nesse último grupo.
     Toda vez que a megassena (Pasquale, é assim mesmo?) acumula, o povo sempre me pergunta "e aí, já fez sua fezinha?" Fezinha? Minha fezinha é no meu dia a dia, com meus alunos na sala de aula (ou fora dela), olhando pros lados pra um doido não furar o sinal e bater em mim, torcendo pro mais fraco ganhar pelo menos uma vez, acreditando que ainda dá tempo de salvar um pouco do mundo, difundindo a ideia de micropolítica não-institucional (hei, preciso escrever sobre esse conceito!), dando um abraço nos brothers, tomando uma na quarta com meu irmão urso Chikão, torcendo pros meus alunos passarem logo no vestibular (sobretudo quem já fez mais de dois), tentando não faltar com meu trabalho, lendo o que eu quero no meu tempo, almoçando na minha mãe alguns dias da semana, trocando ideia com minha família sobre trivialidades e sobre coisas importantes... fezinha é construir a vida, não esperar que ela se construa sozinha, de fora pra dentro. Não acredito só no acaso. Não acredito, só, no acaso. Prezo muito mais pela construção cotidiana da nossa sorte, que são, afinal, todas as possibilidades que se nos apresentam a cada segundo. Se soubermos olhar de esguelha pra ventura, sem nos importarmos demais com ela ou desprezá-la, ela vira pra nós e passa a nos seguir. Sobretudo a boa ventura.
     Um dia, a mãe da Isabella, uma amiga de tempos, morreu. E eu só pude ir à missa de sétimo dia, numa igreja que hoje é perto da minha casa. (nota: não foi a igreja que mudou, fui eu). E foi engraçado, porque eu tava no meio de janelas de aula, com minha irascível Honda CBX Aero 150 cc 1991 (uma moto encarniçada, de tão tosca) e fui lá abraçar minha amiga. Eis que o padre me solta, quando ainda procuro um espacinho que me coubesse no templo lotado, "... pois como disse, certa vez, Santo Agostinho: rico não é o que possui muitas coisas, mas o que precisa de pouco". E parece que eu não ouvi mais nada do que ele disse depois disso, pois de certa forma, a frase entrou direto no meu coração como um mantra sagrado que nos cobre de verdade e lucidez o qual passamos a repeti-lo sempre. Eu me dei conta de que era rico! Nunca passei fome na vida, tenho uma cama confortável para descansar dos dias corridos, tenho um veículo que me leva a todo lado, tenho um sem-número de amigos confiáveis e alguns nem tanto, mas que são gente boa, tenho uma família fantástica, tenho roupas pra me vestir, tenho o trabalho com o qual sonho e me realizo todos os dias... Peraí, sou rico pra caralho! E pra que mais, eu sempre me pergunto!
     Fico admirado de ver gente que tem se dado bem no trabalho, tem ganhado dinheiro mais até que o suficiente (quanto é o suficiente?) e não desliga. Parece que não está bom. Parece que ainda é preciso de mais. Se nós sabemos que o mundo vai acabar por causa do nosso ritmo de consumo, se sabemos que o desejo incipiente de compra acaba quando nosso dinheiro vai à mão do vendedor (às vezes antes mesmo de você repassá-lo), por que então continuamos a seguir esse modelo de vida? Parece tão óbvio esse nosso suicídio moral e ao mesmo tempo tão nublado... O que fazer para as pessoas despertarem? Ficar repetindo mil vezes "pare de comprar! pare de comprar!"? Sinceramente, não quero esse despertar quando já não houver mais nada. Anseio pela mudança, acredito nas pequenas ações, acredito no adolescente. E sim, vou repetir quantas vezes for necessário

Destrua o véu preto que cobre teus olhos
Ouça o que não foi dito
Leia o que não foi escrito
Destrua o véu preto que encobre os discursos
Arregace o coração pra fora dos peitos
Abra-te o cérebro
Torna-te um cérbero
Mas não defenda um inferno
- Isto é o que já fazem todos - 
Pense por três, morda por um
Rasgue as carnes da indiferença
Faça-te visto
Xingue um palavrão que te liberte ante o discurso falacioso das propagandas
À merda o consumo!!!
O lixo que ele produz na rua
E na cabeça sua!
Torna-te um monstro social que pensa,
Que hoje pensar dói, machuca e
Livra!

     Todos precisam de conforto, isso eu não nego. Pra mim, todos precisam viver dignamente. Mas pra que o ouro? O carro importado? Pra que quadruplicar rendas? Pra que solapar o miserável e enfurná-lo num buraco social mais fundo que o donde ele se encontra?
     Reescreva sua história com sua caneta. Eu estou reescrevendo a minha. Minha sorte são os caminhos que eu venho trilhando e abrindo com os olhos arregalados de paixão por tudo quanto se ligue à vida. Como diria o Mulder, porém aqui noutro contexto: "eu quero acreditar".