terça-feira, 17 de junho de 2008

millôr

Eu sou suspeito pra falar do Millôr. Depois de ter contato com as suas fábulas mais que fabulosas, passei a ser leitor constante desse cara. Vez ou outra topo com um texto dele na net, na Veja (mas não Leia!) e com alguns outros que atribuem a ele mas não o são.
Esse, por exemplo, recebi pela net com sendo dele. Mas esse parece mesmo. É um perturbado.


Chapeuzinho Vermelho

Era uma vez (admitindo-se aqui o tempo como uma realidade palpável, estranho, portanto, à fantasia da história) uma menina, linda e um pouco tola, que se chamava Chapeuzinho Vermelho. (Esses nomes que se usam em substituição do nome próprio chamam-se alcunha ou vulgo). Chapeuzinho Vermelho costumava passear no bosque, colhendo Sinantias, monstruosidade botânica que consiste na soldadura anômala de duas flores vizinhas pelos invólucros ou pelos pecíolos, Mucambés ou Muçambas, planta medicinal da família das Caparidáceas, e brincando aqui e ali com uma Jurueba, da família dos Psitacídeos, que vivem em regiões justafluviais, ou seja, à margem dos rios. Chapeuzinho Vermelho andava, pois, na Floresta, quando lhe aparece um lobo, animal selvagem carnívoro do gênero cão e... (Um parêntesis para os nossos pequenos leitores — o lobo era, presumivelmente, uma figura inexistente criada pelo cérebro superexcitado de Chapeuzinho Vermelho. Tendo que andar na floresta sozinha, - natural seria que, volta e meia, sentindo-se indefesa, tivesse alucinações semelhantes.).

Chapeuzinho Vermelho foi detida pelo lobo que lhe disse: (Outro parêntesis; os animais jamais falaram. Fica explicado aqui que isso é um recurso de fantasia do autor e que o Lobo encarna os sentimentos cruéis do Homem. Esse princípio animista é ascentralíssimo e está em todo o folclore universal.) Disse o Lobo: "Onde vais, linda menina?" Respondeu Chapeuzinho Vermelho: "Vou levar estes doces à minha avozinha que está doente. Atravessarei dunas, montes, cabos, istmos e outros acidentes geográficos e deverei chegar lá às treze e trinta e cinco, ou seja, a uma hora e trinta e cinco minutos da tarde".

Ouvindo isso o Lobo saiu correndo, estimulado por desejos reprimidos (Freud: "Psychopathology Of Everiday Life", The Modern Library Inc. N.Y.). Chegando na casa da avozinha ele engoliu-a de uma vez — o que, segundo o conceito materialista de Marx indica uma intenção crítica do autor, estando oculta aí a idéia do capitalismo devorando o proletariado — e ficou esperando, deitado na cama, fantasiado com a roupa da avó.

Passaram-se quinze minutos (diagrama explicando o funcionamento do relógio e seu processo evolutivo através da História). Chapeuzinho Vermelho chegou e não percebeu que o lobo não era sua avó, porque sofria de astigmatismo convergente, que é uma perturbação visual oriunda da curvatura da córnea. Nem percebeu que a voz não era a da avó, porque sofria de Otite, inflamação do ouvido, nem reconheceu nas suas palavras, palavras cheias de má-fé masculina, porque afinal, eis o que ela era mesmo: esquizofrênica, débil mental e paranóica pequenas doenças que dão no cérebro, parte-súpero-anterior do encéfalo. (A tentativa muito comum da mulher ignorar a transformação do Homem é profusamente estudada por Kinsey em "Sexual Behavior in the Human Female". W. B. Saunders Company, Publishers.) Mas, para salvação de Chapeuzinho Vermelho, apareceram os lenhadores, mataram cuidadosamente o Lobo, depois de verificar a localização da avó através da Roentgenfotografia. E Chapeuzinho Vermelho viveu tranqüila 57 anos, que é a média da vida humana segundo Maltus, Thomas Robert, economista inglês nascido em 1766, em Rookew, pequena propriedade de seu pai, que foi grande amigo de Rousseau.

domingo, 15 de junho de 2008

contoIV

Crionças...

Manchas modernas


A vida moderna não dá tempo para ninguém. Põem filhos no mundo pessoas que desejam completar o ciclo humano da procriação, mesmo nas condições mais adversas e até irresponsáveis. Devia adotar-se mais, já tem muita criança no mundo, mas fatores como o preconceito e mesmo o próprio desejo pessoal de um casal – e mais especificamente o da mulher – causam estagnação nas leis que não se movem na direção de modificar e facilitar a adoção. Orfanatos exportam às ruas todos os anos milhares de crianças que tantas vezes enveredarão para o crime e para as drogas. Este fenômeno chama-se auto-mutilação social, já que é de responsabilidade do corpo social gerir e cuidar das vidas que o compõem. Além desse agravante, há o fato de a revolução feminina – tão pregada e atualmente criticada pelas feministas – ter vingado e hoje não se precisar mais de pessoas do sexo masculino para quase nada. Tudo pode ser feito pelos dois. Elas estão em tudo e em jornada tripla de vida: trabalho fora, casa, família.

Assim, tão visível este fenômeno é, também o é o crescente número de empregos para babás. Nunca se precisou tanto delas. A casa de Ana é um exemplo não raro dessa nova realidade. Ana trabalha o dia todo. Saiu de licença maternidade para ter Bárbara no final do ano, emendando com as férias que a empresa concedeu-lhe, como fazem as empresas mais sensatas. Sozinha desde que começou a trabalhar fora de casa, ela se sentia solitária tendo trinta anos e sem pretendentes a marido. Isso compõe um fato curioso: muitas mulheres estão preferindo ficar sozinhas mesmo, já que elas descobriram que homens dão muito trabalho. No entanto, as que não querem ficar sozinhas, mas não querem se casar com homens, ou experimentam o sexo feminino – que entre elas é bem mais aceitável como opção do que no outro gênero –, ou arrumam um filho. Com o mundo cheio de crianças abandonadas pelas mães sem condição de criá-las, era racional que Ana adotasse uma criança. Pois foi exatamente isso o que ela não fez. Preferiu engravidar de um esperma escolhido pelas características físicas do pai, nada mais moderno e revista Caras.

De volta ao trabalho, Ana não teria tempo durante as oito horas de sua jornada pra ficar com a filhotinha, que muito raramente ia pra casa da avó, que de tão moderna quanto a filha, vivia nos cruzeiros da “melhor idade” pelo mundo. Então que ela teve de arranjar um jeito de criar a filha. Fora os planos de colocá-la no futuro numa escola de ensino global, ela decidiu que uma babá previamente escolhida por ela cuidaria da filha. Assim o fez. Colocou o anúncio no jornal, pediu conselho às amigas – que eram todas contra, mas nenhuma tinha filho como ela pra saber como era difícil –, pediu indicações aos parentes e, depois de várias entrevistas, sempre com Bárbara no colo atenta a quem potencialmente iria cuidar dela, escolheu Valdirene. Valdirene não tinha um currículo muito diferente do das outras pretendentes ao cargo, mas era simpática e tinha o segundo grau. Adorava crianças e um dia ia fazer “faculdade de cuidar de crianças”, era o sonho. Ana riu do alto astral da moça; Bárbara continuava atenta, sem julgá-la com o olhar. Valdirene olhou as duas com esperteza e fixou o olhar mergulhador nos olhos da menina enquanto sua mãe atendia ao celular.

- Ok, Valdi... Valdi..

- Valdirene, senhora.

- Isso, Valdirene, pronto. A partir de segunda você comparecerá a este endereço. Você fará o serviço de casa e cuidará de Bárbara. O salário será o combinado e conto com sua eficácia.

- Sim, senhora. Pode contar. Estarei lá na segunda, né, Babi? – apertou a bochecha da menina que ela até corou de raiva, mas não chorou.

- Vocês vão se dar super bem – a menina com as duas mãos na boca olhava a mãe falando.

- Eu tenho certeza disso, dona Ana – Valdirene, antes de se levantar, lançou mais um olhar daqueles à menina.

Passou segunda, passou terça, passou a semana. Valdirene era um achado. Cuidava da casa, chegava cedo, saía tarde e Bárbara estava muito bem cuidada, aparentemente. Passou um mês e, com a correria que Ana enfrentava no primeiro trimestre de vacas gordas da empresa de telefonia celular, chegava em casa cansada e não notava praticamente nada. Valdirene despedia-se da patroa com o cheiro de colorama típico de seu cabelo molhado e sempre dava um beijinho na menina, que mal reagia à babá. No final-de-semana, mais precisamente no domingo, dia de folga de Ana, a babá-empregada era dispensada e a mulher brincava com a filha o dia inteiro, mesmo esgotada. Sentia-se realizada profissionalmente, ascendia com competência de quem abandona tudo para o trabalho, e pessoalmente, pois tinha uma filha linda e que era um doce.

Isso da doçura de Bárbara começou, de certa maneira, a incomodar Ana com o tempo. Ela achava que a filha não se parecia tanto com ela, uma mulher muito ativa desde criança, e que isso certamente tinha alguma relação com os cuidados que a menina estava recebendo. Começou a reparar quando Valdirene ia embora, se a filha tinha algum sinal no corpo, na cabeça, se notava alguma coisa de diferente em seu comportamento e na maneira sempre bem humorada e disposta que a secretária do lar despendia à patroa sempre que esta chegava em casa. Nove meses se completavam do início do serviço de Valdirene e a pequena já estava com dois anos. Já dava seus passos e falava de tudo, da maneira como crianças nesta idade falam. Mas um olhar indecifrável dizia algo a Ana.

Ana começou a desconfiar. Passados alguns meses de cabreirice, Instalou câmeras em casa para observar as atividades da empregada e a forma como esta cuidava da pequena Bárbara. Com os recursos modernos de monitoração via satélite, ela colocou a pequena tevê no seu escritório na empresa, onde passava a maior parte do tempo e onde poderia notar qualquer coisa de anormal. Ela percebeu que sua filha chorava muito o dia todo, a empregada tinha uma cara muito fechada longe da patroa e Ana, já bastante preocupada com o que poderia e talvez estava perto de ver, desligou o monitor nesse primeiro dia em que funcionou. Alguma coisa nela impediu-a de assistir a um espancamento de sua filha. Algo lhe dizia que se ela visse cenas desse tipo, iria cometer um assassinato. Mataria sem dúvidas a empregada.

Neste dia, quando chegou em casa com a cara muito fechada e desconfiada, encontrou uma Valdirene igualmente séria, que se despediu rapidamente e foi embora. Ana correu ao quarto da pequena e lá estava ela no berço, desacordada e pálida. Dirigiu-se em direção à filha já aos prantos e assustada com o choro da mãe, Bárbara acordou nos braços dela e deu um sorrisinho de quatro dentes. “Graças a Deus você está bem, graças a Deus!”

Estava decidida, iria dispensar a empregada, dar um jeito de mudar de emprego e cuidar ela mesma da filha. Na próxima sexta ela despacharia a empregada.

- Na próxima sexta eu despacho essa bruxa, viu, filhinha?

- “Dipacho”?

- Mamãe é quem vai cuidar de você agora, eu vou mudar de emprego pra gente poder ficar mais junta – idealizava a nova Ana.

Quando na sexta se completaram dois anos que Valdirene cuidava da casa e da filha, Ana decidiu voltar mais cedo do trabalho, tinha a intenção de ter uma longa conversa antes com Valdirene. Mesmo já nem tão desconfiada assim da moça, já que as câmeras não registraram nenhuma cena que inspirasse violência, ela já havia pedido contas do emprego. Passaria a trabalhar em casa com assessoria por computador e daria conta, mesmo ganhando muito menos, de sustentar a filha e a casa. Diria a Valdirene que ela era muito boa, que as duas se davam muito bem, aliás, as três, e que sempre que ela precisasse ligaria para ela, com certeza. Quando estacionou o carro na garagem, viu uma mancha de dedos no portal da entrada e na parede. Desceu do carro rapidamente, checou: era sangue. “Meu Deus do céu, o que é que essa louca fez? Eu sou capaz de matá-la se alguma coisa aconteceu, matá-la”, sussurrava aos prantos, enquanto seguia a trilha de grossas gotas de sangue que dariam no seu quarto. Chegando lá, encontrou a pequena Bárbara totalmente ensangüentada, sentada em cima do corpo de bruços de Valdirene com uma enorme faca na mão. Quando a mãe soluçou de susto, a menina virou-se para ela como fosse um brinquedo:

- Dipachei a Valdilene antes de você, mamãe!

domingo, 8 de junho de 2008

contoIII


Mais uma produção minha, data de 2005 e mostra já a minha aversão a negociações...

A dinheirama

É bom avisar logo que esta história se parece com aquelas piadas que se contam inteiras, durante meia hora, pra depois dizer-se que no final o cara morre, a caixinha faz ploc-ploc, a tocha faz tchu, enfim, você espera um tempão e a única pessoa que ri é a que conta, pois a piada é péssima e você morre de raiva. Portanto, se você não quer que eu ria de você, não leia mais, pelo menos a isso você não é obrigado. E, afinal, dinheiro nem é tudo.

Era num saco plástico, pendurado por entre algumas trepadeiras nas grades da movimentada faculdade de enfermagem, a qual ficava na esquina de uma movimentada praça, num movimentado horário, que se encontrava a dinheirama. Ninguém sabe quem deixou aquilo lá às seis e meia da tarde. Nem por quê: duas mil e oitocentas notas de cem.

Aquele dinheiro, todo verde, parecia, em verdade – e talvez seja esse o motivo pelo qual ninguém notou-o por lá – palhas de pamonha. Ele não estava distribuído em pacotes, como num cofre, nem totalmente fora de ordem.

Dona Neuza foi a primeira pessoa a passar pela dinheirama depois que esta foi deixada pendurada nas grades da faculdade. A senhora é estudante desse curso, já faz mais de três anos que chega com sua cara desanimada e desanimadora à noite para assistir às aulas. Trabalha o dia inteiro numa repartição pública, cuida do filho Lucas sozinha quando chega em casa às cinco, e vai pra faculdade às seis, pra chegar lá às sete e meia. É uma longa viagem da casa dela até a universidade. Chegando lá, pra desviar do homem que vinha no sentido contrário carregando uma porta com maçaneta nova e chave encaixada, esbarrou na sacola, olhou-a, bateu na blusa limpando um não-sujo e entrou pelo portão em direção à sala.

Seu Moacir viu de longe a sacola recheada de dinheiro, de longe mesmo concluiu que podia ficar rico naquele dia, mas depois, pra não bater a porta que carregava na moça que vinha em sua direção, desviou os olhos da sacola, esquecendo-se logo em seguida do que podia ter querido pensar que havia nela. Delírios por carregar uma porta, sendo que não vai abri-la, pois a porta não era dele.

Carlos jogara bola até tarde depois da aula com os colegas no campinho que ficava perto da praça, próximo à faculdade. Ele olhou pro ponto de ônibus, perto do portão da faculdade; de relance olhou a sacola, quando quis fixar-se nela, um ônibus se aproximou rápido, assustando-o, fazendo com que atravessasse a rua por trás do ônibus por lembrar-se da surra que possivelmente iria tomar em casa por chegar àquela hora.

Sérgio foi quem chegou mais perto, foi quem tocou, foi quem quase sentiu o cheiro da dinheirama. Ele caminhava devagar, rente ao gradeado, rumando inevitavelmente para onde estava a sacola. Cada passo, cada passo que ele dava, cada passo que ele dava colocava-o, cada passo que ele dava colocava-o mais perto da sacola. Até que esbarrou nela, como dona Neuza. Só que ele parou. Não sentiu cheiro de pamonha, pelo contrário, suas mãos não estavam enganadas de que aquilo que tinha lá dentro era muito papel. Quis enfiar a mão na sacola, sorrateiramente desavergonhado. Mas ouviu um grito: “Não mexe nisso!”, era Marina gritando com o filho Caio para ele não pegar a seringa usada que estava no chão, próximo à lata de lixo que ficava logo à frente do ponto de ônibus (ela esperava o ônibus, como outros). Daí Sérgio saiu de fino, fingindo que não era com ele. Não tinha como ele saber que não era com ele, ele é cego.

João viu a cena. Ficou muito curioso com a atitude do cego, já que não relacionou o grito de Marina com o fato de Sérgio ser cego. Tencionou avisar o homem que estava deixando pra trás uma sacola, mas distraiu-se com o chamado do amigo Cláudio, que saía da aula de direito (a faculdade dele ficava em frente aos fatos) e oferecia carona. Como quem não tem nada, quando tem carona sabe que carona é bem melhor que nada, entrou no carro do amigo com esse dando um forte tapa nas suas costas em sinal de grande amizade nutrida por ele. Como lembrar-se da sacola depois de um tapa daqueles? Foi-se embora mais um possível futuro dono do dinheiro.

Duas mil e oitocentas notas de cem. É muito dinheiro, dou fé. Dizem que as pessoas costumam ser muito mal educadas, jogam lixo na rua, não se preocupam com a natureza, nem com as enchentes, nem com nada. Aparecida só confirma esse jargão. Descia ela com a filha Parla, que por ironia era muda, pela calçada que esquinava o gradeado e fatalmente daria na sacolaça, no espavento, no despautério, no inóspito monte de dinheiro. A pobre Parlinha não falava com a voz. Tentava se expressar para a mãe com gestos. Suas mãos eram tudo, seus braços eram hábeis e suas pernas tentavam acompanhar o ritmo corrido de sua mãe. Ela sabia o que era dinheiro. Só não sabia o que era muito dinheiro. Passando quase de chofre pela sacola, a menina pegou-a sem sua mãe ver, carregou-a sem olhar o que tinha dentro, como se quisesse se afastar primeiro pra ver o que tinha em mãos. Sua mãe estava brava com ela, uma vez que a menina já tinha pego várias coisas da escolinha até ali. Isso irritava Aparecida, que pegava tudo tentando ver o que era ou o que a menina queria dizer. Como já estava sem uma gota de paciência, quando viu a sacola na mão da filha, não quis nem ver, pegou-a de sua mão e, gritando com a filha pra parar de pegar tudo que vê pela rua, jogou a sacola entre o meio fio e o asfalto, daquele jeito que a gente joga sem intenção e cai exatamente onde queremos e ficamos felizes logo em seguida por termos acertado alguma coisa na vida. Costuma até sair um sorriso, às vezes até uma gargalhada. Se Aparecida risse ali, ia ficar parecendo que estava rindo de si mesma, da asnice que acabara de cometer. A menina não reagiu, não esboçou uma oposição à tirania de sua mãe. Talvez por não ter visto o dinheiro de fato, talvez por estar vingando-se de sua incompreensiva progenitora.

Uma vez alojada ali, a sacola ia ter destino certo: alguém passaria de carro, veria aquele bolo de notas verdes de cem dentro dela – ela era daquelas vagabundas, brancas, de supermercado, sem logotipo – e ficaria rico. Não precisava de carro, alguém que gostasse de andar na rua ao invés da calçada, enfim, ali parecia estar ela mais visível do que no gradeado. Até porque ali as notas poderiam se espalhar com um vento mais forte. Também podia acontecer de não dar esse vento e as notas continuarem lá, intactas, até o dia seguinte, quando às sete e vinte e dois os garis estariam varrendo e recolhendo os pequenos lixos da rua e algum deles toparia com o insólito e: morreria do coração, ficaria extremamente feliz ou ficaria louco, não respectivamente. Mas a sorte estava conspirando pra ninguém. É tanto que nenhuma criatura humana achou a dinheirama. Porém a chuva de veranico que caiu inesperadamente às sete e cinco achou e levou, no leito de sua enxurrada, dinheiro que se a boca de lobo fizesse idéia do tanto, abriria um sorriso largo, mudaria de vida depois de engoli-la toda, deixando nenhuma notinha de lembrança.