sábado, 18 de junho de 2011

anotações de um homem cinza (I)

Talvez isso vire um livro pra ser escrito em julho. 


______



I

O meu hábito era tomar um banho às seis e dez naquela merda de chuveiro que não esquenta direito. Depois de vestir o uniforme, depois de comer o pão de ontem que o diabo sovou e tomar o café de marca barata, eu passava o gel no cabelo olhando no espelho que ficava em cima da cadeira que eu peguei da casa do meu padrasto. Anteontem olhei fixamente para minha cara, para o meu cabelo que precisava de aparo, esbocei um sorriso com as sobrancelhas voltadas pra baixo (eu gostava de parecer mau) e quando senti que minhas bochechas voltavam ao lugar assim como minhas sobrancelhas, a imagem do espelho descascado nos cantos continuou com a expressão. Senti um palor subir pela minha cara quando a vi dizer: “você é a imagem mais medíocre da derrota. Olhando assim pra você, não se pode sentir nem pena. Esse seu corpo macilento e essa eterna cara de segundo lugar são o perfeito espectro da incompetência humana. A verdade é esta: você é um derrotado. Olhe bem pra seus relacionamentos: a Diana, sua primeira e única namorada de verdade, deixou você porque você ‘era muito parado’; a Cláudia, a menina que você dizia ‘pegar’ para o povo da empresa nem sequer sabe da sua existência depois daquele beijo, bêbada, naquela ‘festa’ de bairro a que você foi – desacompanhado, diga-se; a Myrelli tem vergonha de falar pras amigas que deu pra você duas vezes de dó, de pura dó. Ela fala que deu porque estava a fim, mas ela deu porque acha que todo mundo merece comer alguém na vida, ou seja, é uma puta frustrada como você; a última é a Ceziane. Nessa você deposita uma fé de que vai dar certo, de que ela gosta realmente de você; não é bonita, nem é certa de corpo, é ‘legal’. Sabe o que aconteceu? Você diminuiu seu parâmetro para se sentir mais confiante. Mas isso não é ser superior, é reconhecer a sua ruína pessoal antes mesmo de tentar alçar qualquer voo. O que aliás seria uma estupidez descabida, já que se fôssemos aves, você seria a galinha aleijada sem asas. Entenda que suas ideias, o que dizem lá na igreja no domingo, que você frequenta somente por peso de consciência, você não ouve de fato o que dizem lá e quando ouve, não entende, entenda que suas ideias não são originais. Nada do que você faça alguém perto de você já não tenha feito. Você é o produto importado da China que amarela. Você é mais barato. A sua dignidade restringe-se ao fato social chamado trabalho. Naquela loja de colchões você realmente acha que algum dia vai se destacar, que vai passar o Cleber nas vendas, vai impressionar o Márcio e ele te elogiará na frente dos outros vendedores. Mas isso não vai acontecer. Não vai porque você nasceu estagnado. Você não lembra, mas nos dias em que ficou encubado pra ver se sobrevivia, você deveria ter escolhido não vir pra cá, deveria ter ficado lá dentro. Mas num esforço sobre-humano dos médicos, você veio à tona. Pela primeira (e não última) vez, não foi você quem decidiu. O tempo, a vida, as pessoas têm te empurrado. Seu tempo particular, psicológico, é atrasado, como o dos relógios paraguaios que seu pai vendia quando você era pequeno. A separação dos seus pais porque ele era um canalha e transava com todas as amigas da sua mãe (esse y você não herdou) aconteceu e parece que até hoje você não se deu conta disso. Seu pai superou, sua mãe superou, arranjou outro pra explorá-la e você, no fundo do seu raso âmago, acha que um dia eles vão voltar. Você tem vinte e três anos e esperança de nove! Entende o quanto é simplório? E ainda acha que os amigos ao seu redor são pessoas em que pelo menos você pode confiar... o Claudiosmar, seu ‘melhor amigo’, está, neste exato momento, se masturbando pensando na Ceziane. É provável que ele chegue nela antes de você. É provável que você se esquive quando ele vier te contar que a está ‘pegando’. É provável que você ache legal da parte dele te contar isso. Numa comparação, porque parece que você só entende as coisas ilustradas, é como se alguém enfiasse os dedos nos seus olhos só pra saber como é o prazer de fazer isso, e você ainda deixasse!! O Tibúrcio disse ontem, bem atrás de você, e é bem possível que você tenha escutado e, na sua covardia estonteante, tenha fingido que não ouviu, ele disse que sua calça é um número maior do que os 36 que você usa e que sua bunda desaparece com a camisa frouxa, mal disposta nas suas costas. Mas ele não disse por brincadeira, fazendo troça como fazem os amigos. Disse isso porque é importante para ele humilhar alguém pior do que ele, alguém que esteja num patamar mais raso que o dele. Você é essa pessoa educada, humilde, ‘gente-fina’, faz tudo o que te mandam, tudo. Incrível como ainda não te chutaram a cara, o tanto que você erra quando faz aos outros. Já reparou que a palavra que você mais usa é ‘desculpa’? Você se desculpa por tudo e com todos. Imagino que já tenha passado pela sua cabeça pedir desculpas a alguém por você existir, mas não, você não tem essa capacidade de reflexão ou noção de se autopunir para atingir um outro patamar. Você está na sombra, fora do radar das reprimendas do crescimento. Você está na sobra. Você está no canto cinza da existência, no morno, resultando todos os dias da ingratidão humana frente a seus inúmeros desafios. Mas você não é vítima. A vítima é o resultado de uma injustiça. Você se sacaneia. Você se sabota. Você cria todas as condições necessárias para a humilhação diária. Essa é a sua única casca: a sensação de resistir a insultos e mágoas sem se ferir profundamente. Ironicamente, o que te salva é exatamente o que te torna tão pueril e diletante.”
Depois disso eu fiquei meio aéreo; resolvi por um lençol azul desbotado que eu peguei na casa da minha mãe sobre o espelho de bordas alaranjadas. Que droga, eram cinco pras sete e eu tinha que entrar às sete e meia na terça, porque era dia de balanço. Cheguei atrasado quase trinta minutos e o Márcio me deu um esporro daqueles. Acho que preciso acordar mais cedo.


3 comentários:

André Alemão disse...

meio o retrato de qualquer homem, pelo menos uma vez na vida. quem nunca teve o dia de cão? manda mais.

Jéssi disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Jéssi disse...

Atualiza isso aqui, Guga. Há tempos não comento em nada no blog, mas estou sempre lendo e por dentro do que acontece. Então, faça-me o favor de não abandonar seu blog só porque as férias acabaram. Muitas pessoas esperam por seus posts, ok?