sábado, 4 de junho de 2011

texto do outro

Abaixo eu reproduzo o texto de um dos meus mestres (e olha que ele nem foi meu professor formal!) Alexandre Costa sobre o debate acerca do livro do MEC. Já me posicionei sobre o assunto, mas ele fala com a propriedade que lhe cabe como linguista. 

A 'inguinorança' dos puristas hipócritas
A polêmica sobre a aprovação do MEC à distribuição de um livro que incentivaria os "erros de português" tem mais "equívocos" do que aqueles que possam ser encontrados na obra. A ignorância sobre a questão passa pela absoluta desinformação sobre o que seria, de fato, "erro", "gramática" e "uso" e mesmo a tal "unidade da língua nacional".


Assim, por exemplo, quando a obra afirma que seja possível falar "os livro" ou "nós pega os peixe", não estaria, em princípio, incentivando que as pessoas cometam "erros", mas assumindo um fato que é cientificamente provado há décadas pela linguística brasileira. Todos os falantes da língua portuguesa brasileira cometem tais "erros" na fala. Nos dois exemplos, há erros de concordância apenas, e somente de concordância de número.

As línguas são redundantes, ou seja, todas têm a propriedade de repetir elementos formais e semânticos para compensar o "ruído" que possa dificultar a comunicação. Por isso que qualquer falante do português encontrará a marca do plural nestas frases: 1.as casas verdes são maiores; 2. as casas verde são maiores; 3. as casa verde são maiores; 4. as casa verde são maior; 5. as casa verde é maior.

Nenhum falante eliminará a marca de plural do artigo e algumas das frases são menos produtivas, quer dizer, mais improváveis, sobretudo a de número três. O uso da língua funciona de modo complexo e regular e nenhum dos exemplos é mais complexo do que o outro, são apenas diferentes. A ideia de que uma determinada variedade idiomática seja melhor do que outra é milenar e advém da identificação da língua oral à língua escrita, com privilégio para a segunda. Esse fenômeno tem a ver com o uso da escrita para o registro de textos sagrados e legais, ou seja, diz respeito ao valor simbólico dos discursos religiosos, políticos e jurídicos, cujos efeitos se impregnaram na língua escrita.

No entanto, em todas as épocas e lugares, "uma língua" sempre funciona, na realidade, como "várias línguas". No nosso caso brasileiro, e de modo muito simplificado, o português que nos chegou foi resultado da variação diacrônica do galego que também passa pelo espanhol. Aqui já estavam os povos indígenas e, durante séculos, foram faladas em nosso território as chamadas línguas gerais: misturas de várias línguas indígenas e de variedades do português de Portugal. Depois vieram os escravos e migrantes, e a língua portuguesa do Brasil nunca foi e nunca será a de Portugal (aliás, é a língua portuguesa de Portugal que tem ficado mais "brasileira" pela influência da mídia...).

No entanto, até bem pouco tempo, insistia-se na colocação pronominal portuguesa em detrimento da brasileira. Hoje em dia, basta assistir televisão para ver que no Jornal Nacional isso permanece como regra. Seus repórteres dizem cotidianamente "Me contaram", "Nos informaram", "O prenderam" e ninguém escreve cartas ou artigos sobre a recorrência dos "erros de colocação pronominal" na mídia.

Um "erro grave" é sempre o "erro do outro". Em Goiânia, se escuta "nós vai" com tanta frequência como se ouvirá, em Porto Alegre, "tu fez". Mas não se escreve assim nos jornais. Isso é um fato. Outra coisa, bem diferente, é o modo como a escola deve tratar a relação entre a língua escrita e a falada no processo de aprendizagem da comunicação pública e, sobretudo, no estudo da ciência e da cultura.

A modalidade oral é anterior na nossa formação social. Aprendemos a falar interagindo com a família e o mundo. Aprendemos a falar agindo, e nenhum pai, em sã consciência, fica corrigindo os "erros de português" de seu filho nos seus primeiros anos. Haverá, claro, aquele que passará a fazê-lo mais tarde, sem perceber que comete os mesmos erros de vez em quando. Corrigir o português do outro é uma perversidade atávica que herdamos de nossa origem colonial: há um prazer maldoso em subjugar a fala do outro.

No processo de formação escolar, os estudantes têm de conhecer e aprender a língua padrão escrita para ter acesso aos já citados discursos privilegiados da cultura, da religião e da ciência. Isso já está posto em nossos currículos desde a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, cuja formulação envolveu estudiosos de todo o País. Mas a correção gramatical não é o primeiro nem o mais importante fator para a aprendizagem da língua padrão. Antes de aprender a "não errar", precisamos aprender a "acertar".

Os estudantes necessitam de motivos para estudar. O acesso à leitura e à escrita deve dar-se em atividades significativas cujo valor os leve gradualmente ao mundo adulto e público. Nenhum adolescente vai interessar-se por um texto machadiano se nunca refletiu sobre si mesmo; nenhum aluno vai gostar de ler Grande Sertão: Veredas , se não refletiu sobre a beleza da variação linguística. Além disso, para aprender a ler e a escrever é preciso aprender a falar e a escutar. Mas não "corretamente" apenas: é preciso aprender a falar, escutar, ler e escrever "atentamente".

A correção gramatical só é relevante quando vem por último: primeiro, é preciso falar muito, escutar muito, ler muito e escrever muito; depois, é preciso refletir sobre os modos e os sentidos dessa atividade linguística, e suas possibilidades de expressão; e só mais tarde haverá razão para usar a metalinguagem gramatical como ferramenta para a aprendizagem da língua padrão. Sim, a aprendizagem gramatical é importante. Aliás, seu valor é mais relativo à lógica e à estrutura da linguagem e do conhecimento do que à mera "correção linguística". Ninguém precisa estudar gramática para aprender a falar ou escrever corretamente: basta ouvir e ler e consultar dicionários - e decorar... É isso que a maioria dos "campeões da correção linguística" faz: decoram. Apesar de honrosas exceções, não sabem gramática nem como tradição nem como ciência. Suas apostilas, na maioria dos casos, são cópias de boas gramáticas tradicionais.

Enfim, aceitar que se fale ou que se escreva com "erros" - ou melhor, com padrões de concordância da fala, neste caso - não significa que se deva deixar de, em algum momento, e de modo produtivo e adequado, ensinar a variedade padrão escrita e a oralidade letrada padrão. Aprender a usar a língua e a conhecer o mundo da cultura que nela se encontra e se constitui é algo muito mais complexo do que questões de ortografia ou concordância.

A "grande polêmica" sobre o tal "incentivo ao erro de português" aprovado pelo MEC só impressiona a quem não conhece os verdadeiros problemas da educação brasileira. Os mais ferozes e vorazes debatedores, via de regra, nunca pisaram numa escola pública de periferia. Mais do que desinformado, esse debate é hipócrita.

A linguagem é a peça-chave do processo educativo e envolve questões, problemas e métodos absurdamente mais complexos do que esse tipo de debate enseja. Vá à escola do seu filho e pergunte a professores, coordenadores e diretores sobre o planejamento interdisciplinar e transversal da escola. Se a disciplina de língua portuguesa não estiver no centro dessas atividades, caso elas existirem, é sinal de que seu filho está perdendo os melhores anos de sua vida com atividades burocráticas e emburrecedoras.

Não há nada, enfim, a reprovar na obra aprovada pelo MEC, pelo menos com relação às críticas feitas. Se existe algum problema a ser debatido é o fato de alguns formadores de opinião divulgarem e promoverem a desinformação.

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