segunda-feira, 12 de março de 2012

Verdi de primeira viagem




Ouviu dizer que música clássica ajuda a relaxar enquanto se dirige no trânsito caótico da cidade. A sogra dissera isso no almoço de domingo. E se a sogra dissera, só podia ser verdade. Então foi até uma loja para comprar um CD. Pediu ao vendedor que lhe recomendasse algo bom, porque ele não entendia de música clássica, e sua sogra dissera que era bom pra ouvir no trânsito, que deixava as pessoas relaxadas, porque a música é calma e o trânsito, o trânsito não, esse era bem barulhento, perturbador, então ele pensou...
- Está certo senhor, eu entendi – arrematou o vendedor demonstrando um pouco de impaciência, como se já tivesse ouvido aquela história algumas vezes. Ele realmente era daqueles sujeitos calados, mas que contavam as mesmas coisas quando abriam a boca. Mesmo quando abriam a primeira vez pra uma história.
- O que o senhor prefere? Temos aqui – mostrando algumas coletâneas com capas de natureza morta – Strauss, Vivaldi, Chopin, Wagner, Beethoven, Verdi, Handel, Mozart, Tchaikovsky, Enya...
- Enya é música clássica? – interrompeu curiosamente o neófito nesse ramo.
- Não, mas para o que o senhor quer, é a mesma coisa.
- Enya é homem ou mulher?
- É mulher.
- Então não deve prestar. Me vê o verde aí.
- Verdi, o senhor quer dizer...
- Verde, Verdi, Vermelho, desde que seja bom, tanto faz. Se eu ficar calmo, volto pra comprar mais.
- É ópera, senhor. Tudo bem?
- É daquele povo que canta e a gente não entende nada?
- Isso é Sepultura, senhor (o vendedor ria por dentro de sua sacada genial).
- Hein?
- Mais algum?
Levou Giuseppe Verdi. Assim que entrou no seu carro mil, tirou o CD de modão e pôs-se a escutar La Traviata. No princípio teve uma sensação semelhante à de quando comeu kiwi na casa da sogra, no Natal, pela primeira vez. Era gostoso, mas era estranho.
Aos poucos se acostumou e começou a sentir que a música começava a falar-lhe ao coração. Aumentou o volume; aumentou sua excitação. Depois de meia hora de trânsito, sentia-se superior aos demais. Naquele calor suarento que as catorze horas fazem, sentia uma leve brisa entrar pelo vidro aberto do carro. Os outros veículos do engarrafamento suavam. Ele sentia como se seu rosto sorrisse, mesmo sem olhar nos retrovisores para confirmar isso.
Uma moto vermelha, com dois homens magros, parou ao lado do carro dele e o carona sacou um revólver enquanto o da frente acelerava como quem ia sair antes do assalto ser concluído.
- Passa a carteira agora, viado!! Passa logo! Eu te mato, anda! A carteira, caralho!!
Ele ficou meio pasmo com o insólito e esticou o braço lentamente para baixo do console central do carro para pegar a carteira, como pedia o bandido. Enquanto entregava a carteira para o bandido, puxou com a outra mão o braço com revólver do bandido. O outro rapaz saiu em disparada, deixando o carona caindo para trás. O homem então, segurando firmemente o braço do meliante, tirou-lhe a arma da mão inclinando-a para trás e fechou rapidamente o vidro do carro. O sinal abriu logo em seguida, ele engatou a primeira e saiu como sairia se não tivesse um bandido pendurado em seu carro. Ouvia Verdi, arrastava um bandido pelo braço em seu carro a trinta e poucos quilômetros por hora e ia imprimindo velocidade, como faria normalmente. O bandido gritava e dava cabeçadas de capacete no vidro, até que este quebrou-se. As mãos do homem mantiveram o jovem bem preso com o braço torcido pra baixo depois disso. Os calçados se esfacelavam no asfalto, o sangue do braço misturava-se ao suor, La Traviata falava-lhe aos seus sentidos mais humanos. Alguns carros ao redor estavam parados, uns protestavam pela crueldade, outros buzinavam, anuentes e se sentindo vingados, andavam lado a lado com a cena.
Alguns quilômetros depois, quando o bandido não mais reagia, a polícia o parou. Mandou-o encostar o carro. Só soltou o bandido porque viu suas pálpebras fechadas e não ouviu mais sua voz, não porque tinha uma 765 apontada pelos policiais para sua cabeça.
Desceu do carro, calmo, resignado, dileto. Os policiais falavam alto, mas a música de Verdi falava-lhe mais. Os restos mortais do bandido jaziam ao lado do veículo. Com as mãos levantadas, olhando para baixo, passou por cima do corpo como se fosse um entulho.
Perguntado pela sogra, na cadeia, como fizera obra tão bruta, ele dissera que não sabia.
- Mas isso não deixou você importunado, matar um homem, Constâncio?
- Sabe, d. Norma, a senhora tinha razão, como sempre: essa tal de música clássica relaxa a gente. A senhora conhece esse Verdi?

3 comentários:

estépheny disse...

Adorei!

RAdS disse...

A que texto doidera, é professor faz tempo que não tenho uma aula com um cara doidão igual você, na facul quase todas são um porre. Bons tempos (:

Marcioni Panisi disse...

Guga, não preciso dizer que sou sua fã incondicional... sinto falta do tempo que não tivemos juntos... sinto falta nas horas que não conversamos...sinto falta do seu riso solto e do contido...sinto falta da sua presença e da minha presença na sala dos professores com pitadas de humor, sarcasmo, ironias mas acima de tudo iluminadas... sinto falta de você, amigo que reconheço de uma outra dimensão.

Só para constar...estou ouvindo Verdi...