domingo, 15 de junho de 2008

contoIV

Crionças...

Manchas modernas


A vida moderna não dá tempo para ninguém. Põem filhos no mundo pessoas que desejam completar o ciclo humano da procriação, mesmo nas condições mais adversas e até irresponsáveis. Devia adotar-se mais, já tem muita criança no mundo, mas fatores como o preconceito e mesmo o próprio desejo pessoal de um casal – e mais especificamente o da mulher – causam estagnação nas leis que não se movem na direção de modificar e facilitar a adoção. Orfanatos exportam às ruas todos os anos milhares de crianças que tantas vezes enveredarão para o crime e para as drogas. Este fenômeno chama-se auto-mutilação social, já que é de responsabilidade do corpo social gerir e cuidar das vidas que o compõem. Além desse agravante, há o fato de a revolução feminina – tão pregada e atualmente criticada pelas feministas – ter vingado e hoje não se precisar mais de pessoas do sexo masculino para quase nada. Tudo pode ser feito pelos dois. Elas estão em tudo e em jornada tripla de vida: trabalho fora, casa, família.

Assim, tão visível este fenômeno é, também o é o crescente número de empregos para babás. Nunca se precisou tanto delas. A casa de Ana é um exemplo não raro dessa nova realidade. Ana trabalha o dia todo. Saiu de licença maternidade para ter Bárbara no final do ano, emendando com as férias que a empresa concedeu-lhe, como fazem as empresas mais sensatas. Sozinha desde que começou a trabalhar fora de casa, ela se sentia solitária tendo trinta anos e sem pretendentes a marido. Isso compõe um fato curioso: muitas mulheres estão preferindo ficar sozinhas mesmo, já que elas descobriram que homens dão muito trabalho. No entanto, as que não querem ficar sozinhas, mas não querem se casar com homens, ou experimentam o sexo feminino – que entre elas é bem mais aceitável como opção do que no outro gênero –, ou arrumam um filho. Com o mundo cheio de crianças abandonadas pelas mães sem condição de criá-las, era racional que Ana adotasse uma criança. Pois foi exatamente isso o que ela não fez. Preferiu engravidar de um esperma escolhido pelas características físicas do pai, nada mais moderno e revista Caras.

De volta ao trabalho, Ana não teria tempo durante as oito horas de sua jornada pra ficar com a filhotinha, que muito raramente ia pra casa da avó, que de tão moderna quanto a filha, vivia nos cruzeiros da “melhor idade” pelo mundo. Então que ela teve de arranjar um jeito de criar a filha. Fora os planos de colocá-la no futuro numa escola de ensino global, ela decidiu que uma babá previamente escolhida por ela cuidaria da filha. Assim o fez. Colocou o anúncio no jornal, pediu conselho às amigas – que eram todas contra, mas nenhuma tinha filho como ela pra saber como era difícil –, pediu indicações aos parentes e, depois de várias entrevistas, sempre com Bárbara no colo atenta a quem potencialmente iria cuidar dela, escolheu Valdirene. Valdirene não tinha um currículo muito diferente do das outras pretendentes ao cargo, mas era simpática e tinha o segundo grau. Adorava crianças e um dia ia fazer “faculdade de cuidar de crianças”, era o sonho. Ana riu do alto astral da moça; Bárbara continuava atenta, sem julgá-la com o olhar. Valdirene olhou as duas com esperteza e fixou o olhar mergulhador nos olhos da menina enquanto sua mãe atendia ao celular.

- Ok, Valdi... Valdi..

- Valdirene, senhora.

- Isso, Valdirene, pronto. A partir de segunda você comparecerá a este endereço. Você fará o serviço de casa e cuidará de Bárbara. O salário será o combinado e conto com sua eficácia.

- Sim, senhora. Pode contar. Estarei lá na segunda, né, Babi? – apertou a bochecha da menina que ela até corou de raiva, mas não chorou.

- Vocês vão se dar super bem – a menina com as duas mãos na boca olhava a mãe falando.

- Eu tenho certeza disso, dona Ana – Valdirene, antes de se levantar, lançou mais um olhar daqueles à menina.

Passou segunda, passou terça, passou a semana. Valdirene era um achado. Cuidava da casa, chegava cedo, saía tarde e Bárbara estava muito bem cuidada, aparentemente. Passou um mês e, com a correria que Ana enfrentava no primeiro trimestre de vacas gordas da empresa de telefonia celular, chegava em casa cansada e não notava praticamente nada. Valdirene despedia-se da patroa com o cheiro de colorama típico de seu cabelo molhado e sempre dava um beijinho na menina, que mal reagia à babá. No final-de-semana, mais precisamente no domingo, dia de folga de Ana, a babá-empregada era dispensada e a mulher brincava com a filha o dia inteiro, mesmo esgotada. Sentia-se realizada profissionalmente, ascendia com competência de quem abandona tudo para o trabalho, e pessoalmente, pois tinha uma filha linda e que era um doce.

Isso da doçura de Bárbara começou, de certa maneira, a incomodar Ana com o tempo. Ela achava que a filha não se parecia tanto com ela, uma mulher muito ativa desde criança, e que isso certamente tinha alguma relação com os cuidados que a menina estava recebendo. Começou a reparar quando Valdirene ia embora, se a filha tinha algum sinal no corpo, na cabeça, se notava alguma coisa de diferente em seu comportamento e na maneira sempre bem humorada e disposta que a secretária do lar despendia à patroa sempre que esta chegava em casa. Nove meses se completavam do início do serviço de Valdirene e a pequena já estava com dois anos. Já dava seus passos e falava de tudo, da maneira como crianças nesta idade falam. Mas um olhar indecifrável dizia algo a Ana.

Ana começou a desconfiar. Passados alguns meses de cabreirice, Instalou câmeras em casa para observar as atividades da empregada e a forma como esta cuidava da pequena Bárbara. Com os recursos modernos de monitoração via satélite, ela colocou a pequena tevê no seu escritório na empresa, onde passava a maior parte do tempo e onde poderia notar qualquer coisa de anormal. Ela percebeu que sua filha chorava muito o dia todo, a empregada tinha uma cara muito fechada longe da patroa e Ana, já bastante preocupada com o que poderia e talvez estava perto de ver, desligou o monitor nesse primeiro dia em que funcionou. Alguma coisa nela impediu-a de assistir a um espancamento de sua filha. Algo lhe dizia que se ela visse cenas desse tipo, iria cometer um assassinato. Mataria sem dúvidas a empregada.

Neste dia, quando chegou em casa com a cara muito fechada e desconfiada, encontrou uma Valdirene igualmente séria, que se despediu rapidamente e foi embora. Ana correu ao quarto da pequena e lá estava ela no berço, desacordada e pálida. Dirigiu-se em direção à filha já aos prantos e assustada com o choro da mãe, Bárbara acordou nos braços dela e deu um sorrisinho de quatro dentes. “Graças a Deus você está bem, graças a Deus!”

Estava decidida, iria dispensar a empregada, dar um jeito de mudar de emprego e cuidar ela mesma da filha. Na próxima sexta ela despacharia a empregada.

- Na próxima sexta eu despacho essa bruxa, viu, filhinha?

- “Dipacho”?

- Mamãe é quem vai cuidar de você agora, eu vou mudar de emprego pra gente poder ficar mais junta – idealizava a nova Ana.

Quando na sexta se completaram dois anos que Valdirene cuidava da casa e da filha, Ana decidiu voltar mais cedo do trabalho, tinha a intenção de ter uma longa conversa antes com Valdirene. Mesmo já nem tão desconfiada assim da moça, já que as câmeras não registraram nenhuma cena que inspirasse violência, ela já havia pedido contas do emprego. Passaria a trabalhar em casa com assessoria por computador e daria conta, mesmo ganhando muito menos, de sustentar a filha e a casa. Diria a Valdirene que ela era muito boa, que as duas se davam muito bem, aliás, as três, e que sempre que ela precisasse ligaria para ela, com certeza. Quando estacionou o carro na garagem, viu uma mancha de dedos no portal da entrada e na parede. Desceu do carro rapidamente, checou: era sangue. “Meu Deus do céu, o que é que essa louca fez? Eu sou capaz de matá-la se alguma coisa aconteceu, matá-la”, sussurrava aos prantos, enquanto seguia a trilha de grossas gotas de sangue que dariam no seu quarto. Chegando lá, encontrou a pequena Bárbara totalmente ensangüentada, sentada em cima do corpo de bruços de Valdirene com uma enorme faca na mão. Quando a mãe soluçou de susto, a menina virou-se para ela como fosse um brinquedo:

- Dipachei a Valdilene antes de você, mamãe!

4 comentários:

Branna L. disse...

Krak!
vc n tm dó n eh!?
Que isso! Fiquei chocada!
Eu aqui, morrendo de raiva da tal Valdirene, quase sentindo a minha mão na cara dela e... do nada vc me cria um final desses. Aff... Só essa sua mente psicopata para inventar algo assim, cruel e fascinante! rssr...
Com certeza esse foi O Melhor Conto até hj.
bjs :*

Eva Prado disse...

Guga
dó conta de vc não.....
esse conto ficou sua cara, quando eu estava lendo, vi vc contando a historiaa.
So podia ser vc mesmo pra colocar uma criança de 2 anos como assassina.........
Fiquei o conto todo, so na expectativa da Ana dar umas porradas na Valdirene.....e vc me vem com esse fim...
Agora, da pra perceber MESMO que vc não gosta de criOnçass..
Excelente conto.
Vc escreve muito bem, parabéns......
bjos

Jéssi disse...

Jesus maria josé...
Você quase me mata do coração!
Meu Deus..
Eu tava pasma aqui já...ai dei uma gargalhada boaaa no final!
KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK

Você é o mestre das situações!

Mais um dos seus contos brilhantes!
Esse realmente...adorei!Melhor de todos!
Ficooou muitoo massa.Queriaa enforcar essa tal de Valdirene(nome de pobre,espero que nenhuma Valdirene leia isso).
Gugaa...você foi fantástico mais uma vez..genial!
Mas eu nem preciso mais dizer isso,você já sabe de cor!
Sou tua fã!
Mas também não é pra você se achar a última coca cola do deserto neh?
kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

bejoones!³²¹

Paula § Danna disse...

vixe...

que coisa mais macabra.. quase dei um treco.. mas afinal eu sabia que vc não iria postar um texto que mais parecia encarte policial... mesmmo assim fiquei muito intrigada com o final.. crionças, mas nem tanto.. rsrrs

vc é Dmaisssss...

Meu biscoitim mais querido!