Ouviu dizer
que música clássica ajuda a relaxar enquanto se dirige no trânsito caótico da
cidade. A sogra dissera isso no almoço de domingo. E se a sogra dissera, só
podia ser verdade. Então foi até uma loja para comprar um CD. Pediu ao vendedor
que lhe recomendasse algo bom, porque ele não entendia de música clássica, e
sua sogra dissera que era bom pra ouvir no trânsito, que deixava as pessoas
relaxadas, porque a música é calma e o trânsito, o trânsito não, esse era bem
barulhento, perturbador, então ele pensou...
- Está certo senhor, eu entendi –
arrematou o vendedor demonstrando um pouco de impaciência, como se já tivesse
ouvido aquela história algumas vezes. Ele realmente era daqueles sujeitos
calados, mas que contavam as mesmas coisas quando abriam a boca. Mesmo quando
abriam a primeira vez pra uma história.
- O que o senhor prefere? Temos
aqui – mostrando algumas coletâneas com capas de natureza morta – Strauss, Vivaldi,
Chopin, Wagner, Beethoven, Verdi, Handel, Mozart, Tchaikovsky, Enya...
- Enya é música clássica? –
interrompeu curiosamente o neófito nesse ramo.
- Não, mas para o que o senhor
quer, é a mesma coisa.
- Enya é homem ou mulher?
- É mulher.
- Então não deve prestar. Me vê o
verde aí.
- Verdi, o senhor quer dizer...
- Verde, Verdi, Vermelho, desde
que seja bom, tanto faz. Se eu ficar calmo, volto pra comprar mais.
- É ópera, senhor. Tudo bem?
- É daquele povo que canta e a
gente não entende nada?
- Isso é Sepultura, senhor (o
vendedor ria por dentro de sua sacada genial).
- Hein?
- Mais algum?
Levou
Giuseppe Verdi. Assim que entrou no seu carro mil, tirou o CD de modão e pôs-se
a escutar La Traviata. No princípio
teve uma sensação semelhante à de quando comeu kiwi na casa da sogra, no Natal,
pela primeira vez. Era gostoso, mas era estranho.
Aos poucos se
acostumou e começou a sentir que a música começava a falar-lhe ao coração. Aumentou
o volume; aumentou sua excitação. Depois de meia hora de trânsito, sentia-se
superior aos demais. Naquele calor suarento que as catorze horas fazem, sentia
uma leve brisa entrar pelo vidro aberto do carro. Os outros veículos do
engarrafamento suavam. Ele sentia como se seu rosto sorrisse, mesmo sem olhar
nos retrovisores para confirmar isso.
Uma moto
vermelha, com dois homens magros, parou ao lado do carro dele e o carona sacou
um revólver enquanto o da frente acelerava como quem ia sair antes do assalto
ser concluído.
- Passa a
carteira agora, viado!! Passa logo! Eu te mato, anda! A carteira, caralho!!
Ele ficou
meio pasmo com o insólito e esticou o braço lentamente para baixo do console
central do carro para pegar a carteira, como pedia o bandido. Enquanto entregava
a carteira para o bandido, puxou com a outra mão o braço com revólver do
bandido. O outro rapaz saiu em disparada, deixando o carona caindo para trás. O
homem então, segurando firmemente o braço do meliante, tirou-lhe a arma da mão inclinando-a
para trás e fechou rapidamente o vidro do carro. O sinal abriu logo em seguida,
ele engatou a primeira e saiu como sairia se não tivesse um bandido pendurado
em seu carro. Ouvia Verdi, arrastava um bandido pelo braço em seu carro a
trinta e poucos quilômetros por hora e ia imprimindo velocidade, como faria normalmente.
O bandido gritava e dava cabeçadas de capacete no vidro, até que este
quebrou-se. As mãos do homem mantiveram o jovem bem preso com o braço torcido
pra baixo depois disso. Os calçados se esfacelavam no asfalto, o sangue do
braço misturava-se ao suor, La Traviata falava-lhe aos seus sentidos mais
humanos. Alguns carros ao redor estavam parados, uns protestavam pela
crueldade, outros buzinavam, anuentes e se sentindo vingados, andavam lado a
lado com a cena.
Alguns quilômetros
depois, quando o bandido não mais reagia, a polícia o parou. Mandou-o encostar
o carro. Só soltou o bandido porque viu suas pálpebras fechadas e não ouviu
mais sua voz, não porque tinha uma 765 apontada pelos policiais para sua cabeça.
Desceu do
carro, calmo, resignado, dileto. Os policiais falavam alto, mas a música de
Verdi falava-lhe mais. Os restos mortais do bandido jaziam ao lado do veículo. Com
as mãos levantadas, olhando para baixo, passou por cima do corpo como se fosse
um entulho.
Perguntado pela
sogra, na cadeia, como fizera obra tão bruta, ele dissera que não sabia.
- Mas isso não deixou você importunado,
matar um homem, Constâncio?
- Sabe, d. Norma, a senhora tinha
razão, como sempre: essa tal de música clássica relaxa a gente. A senhora conhece esse
Verdi?
3 comentários:
Adorei!
A que texto doidera, é professor faz tempo que não tenho uma aula com um cara doidão igual você, na facul quase todas são um porre. Bons tempos (:
Guga, não preciso dizer que sou sua fã incondicional... sinto falta do tempo que não tivemos juntos... sinto falta nas horas que não conversamos...sinto falta do seu riso solto e do contido...sinto falta da sua presença e da minha presença na sala dos professores com pitadas de humor, sarcasmo, ironias mas acima de tudo iluminadas... sinto falta de você, amigo que reconheço de uma outra dimensão.
Só para constar...estou ouvindo Verdi...
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